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Saberes da Terra: projeto de Educação do Campo implementado em Sergipe torna-se referência

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O cuidado com a proposta metodológica consiste também em contemplar a diversidade de conhecimentos que permeiam a cultura do campo. Na foto, Dona Josefa em sala de aula no tempo-escola - Arquivo/EJA Campo Saberes da Terra
A experiência inovadora também se destaca pela realização de ações contínuas

“EJA campo trouxe sonho e paixão 

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Para a escola vamos seja como for 

O conhecimento nós buscamos com amor”**

 

Por Priscila Viana*

 

Aos 64 anos, a agricultora Josefa Helena de Oliveira conseguiu realizar um sonho antigo: voltar a estudar. Dona Josefa é moradora do povoado Lagoa Seca, localizado no município sergipano de Simão Dias, e encontrou no Projeto Educação de Jovens e Adultos - EJA Campo Saberes da Terra - a oportunidade de aprender a ler e escrever.

“Na minha época, o povo do campo tinha pouca oportunidade de estudo, não existia uma escola como essa, em que a gente pudesse aprender com o nosso trabalho. No EJA, vi que muita coisa que eu já fazia no meu pedaço de terra era aprendizado para alguém”, lembra dona Josefa.

A agricultora é uma das 320 pessoas beneficiadas pelo projeto de Educação do Campo, implementado em Simão Dias, no ano de 2018, por meio da articulação entre a Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semec) e o Conselho Municipal de Educação.

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A implementação do projeto em Simão Dias contou ainda com o envolvimento de organizações e movimentos sociais e sindicais do campo, além da parceria com a Câmara Temática de Educação do Campo do Território Sertão Ocidental, com o Grupo de Estudos da Pedagogia da Terra e com o Núcleo Estadual de Educação do Campo da Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (Seduc), intitulada, na época, Secretaria de Estado da Educação (Seed). 

Uma das pessoas responsáveis por impulsionar a mobilização da sociedade para incidir na elaboração da política pública municipal foi Adérico Nascimento, que há 23 anos atua na área da educação.

Gestor da área da Educação com formação em Pedagogia da Terra pelo Pronera/MST/UFRN, Adérico coordenou a elaboração e a implementação do projeto EJA Campo Saberes da Terra, em Simão Dias, entre 2016 e 2020.

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“Em 2016, iniciamos mais fortemente o processo de mobilização social e de sensibilização da população para a importância de fortalecer a abertura das turmas em EJA. Foram realizadas diversas visitas e rodas de conversa nos mais variados espaços coletivos da região, como associações, cooperativas, assentamentos rurais e, também, nas igrejas”, relembra o educador.


Apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso. A foto se refere a uma atividade realizada antes da pandemia do Covid-19 / Arquivo/EJA Campo Saberes da Terra

Cuidado metodológico 

A atenção em cada etapa do caminho percorrido pela iniciativa em Simão Dias reflete-se no processo de mobilização social, na elaboração do conteúdo das disciplinas e no aperfeiçoamento das/os educadoras/es contratadas/os. 

“Antes de iniciar o projeto, foi realizado um diagnóstico das comunidades, o que permitiu uma melhor compreensão sobre as dinâmicas de vida e de trabalho das/os educandas/os.

O processo de ensino-aprendizagem precisa estar conectado com a realidade local”, destaca o agrônomo e educador Valdo de Jesus Santos, 50 anos, pós-graduado em Sistemas de Alternância pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e membro do grupo de estudos e educador da EJA Campo Saberes da Terra juntamente com Adérico.  

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A experiência inovadora também se destaca pela realização de ações contínuas de aperfeiçoamento da equipe de educadoras/es e gestoras/es envolvidas/os no projeto, formada por 40 pessoas.

Desenvolvido a partir de uma articulação entre a Semec de Simão Dias e a Faculdade Integrada de Sergipe (Fise), o processo formativo desafiou a equipe a pesquisar sobre as comunidades, considerando  potenciais,  história, cultura, religião,  formas de produção e de organização. 

“Atuar como mediadora entre os saberes dos homens e das mulheres do campo foi uma experiência, sem dúvida, marcante, porque ali pude conhecer uma realidade diferente daquilo que eu vivenciava nas unidades privadas de ensino. É a partir dessa experiência que destaco a necessidade da/o profissional da educação conhecer a realidade dos seus educandos e de sua comunidade, e inseri-la no planejamento”, afirmou a educadora Franciele Alves Ferreira, 27 anos, graduada em História, com especialização em Educação do Campo e experiência em práticas pedagógicas em EJA. 


Atividade de produção de polpa realizada pelas educandas no tempo-escola. A foto se refere a uma atividade realizada antes da pandemia do Covid-19 / Arquivo/EJA Campo Saberes da Terra

Partilha de saberes

O cuidado com a proposta metodológica consiste também em contemplar a diversidade de conhecimentos que permeiam a cultura do campo, tornando a escola um lugar que respeita, valoriza e se integra aos saberes individuais para a construção do saber coletivo.

“Saber do valor do meu conhecimento e da importância das trocas de saberes era o que me motivava a ir para a escola, mesmo depois de um dia de luta e de muitas vezes precisar deixar minha filha com alguém da família para prosseguir com meus estudos”, afirma a agricultora Jilmara de Menezes Calixto, 28 anos.  

Foi nesse rico contexto de troca de saberes que a merendeira e servidora pública municipal Laisiane Almeida dos Santos, mais conhecida como Ziane, 42 anos, não só conseguiu concluir os estudos, como também registrou o processo de ensino-aprendizagem em versos, que deram origem ao livro de poesia popular Vivências da turma Doce Esperança - Projeto EJA Campo Saberes da Terra, publicado em 2020 com o apoio das/os educadoras/es.

“Esse aprendizado me ajudou a ter consciência do caminho que eu queria seguir e criar forças para que isso fosse possível. E também a perceber o quanto o homem e a mulher do campo são pessoas sábias”, afirmou Ziane, ao destacar que continua escrevendo seus versos e que já participou de três antologias. 

No decorrer de três anos, a iniciativa de implementação e regulamentação da Educação de Jovens e Adultos em Simão Dias resultou na criação de 17 turmas, distribuídas em dez comunidades do município, beneficiando 320 pessoas.

Conforme ressalta Adérico Nascimento, os resultados são muito positivos, apesar das dificuldades.

“Um dos nossos desafios é criar o entendimento junto aos gestores municipais de Educação de que a Educação do Campo é possível de ser realizada e que investir em uma Escola de Jovens e Adultos não é um desperdício de recurso público", afirmou o educador e gestor público, que segue dialogando com o poder público de outros municípios para ampliação do projeto.

A metodologia  proposta tem muito a dialogar com os saberes das comunidades e é possível de ser executada pelos municípios, pois fortalece o papel dos conselhos municipais da educação e o retorno das pessoas aos estudos, principalmente dos homens e das mulheres do campo. É na EJA Campo Saberes da Terra que essas pessoas encontram a sua identidade, o espaço para a partilha de saberes”

Atualmente, a EJA Campo Saberes da Terra vem crescendo e servindo de referência para outras experiências na região, pois, além da inclusão do ensino médio em Simão Dias, a iniciativa está sendo multiplicada em mais três municípios de Sergipe - Riachão do Dantas, Tobias Barreto e Poço Verde - e em dois municípios da Bahia - Heliópolis e Paripiranga.  

 

*Priscila Viana é comunicadora popular da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

**Trecho do poema “A Saga da Turma Doce Esperança”, paródia de autoria coletiva das/os educandas/os da Turma Doce Esperança, do Povoado Paracatu do Meio – Projeto EJA Campo Saberes da Terra, em Simão Dias (SE).

***Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito