Nem Donald Trump, seu ídolo, a quem já disse “I love you”, mentiu tanto
Jair Messias Bolsonaro é hors concours no departamento nacional de patranhas e afins. Não tem pra ninguém. Não há, na história do Brasil, aí incluídos os períodos de colônia, império e república, nada parecido. Como diz o Mino Carta, é algo de conhecimento até do mundo mineral. Mas não parece caber na compreensão de grande parte da mídia empresarial.
Salvo um punhado de veículos, entre os quais a Folha de S. Paulo e a TV Globo – que demoraram bastante a acordar -- quando Bolsonaro mente do modo mais descarado, o disparate é interpretado bondosamente como uma ponderação que qualquer governante ou político faria e não fruto da mais deslavada má fé. Como um ponto de vista capaz de ser levado em consideração sobre determinado tema em vez de uma degradação intencional e ostensiva do debate político.
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O jornalismo que não diz que um gato é um gato e que tal gato é um rematado mentiroso, é um jornalismo traidor.
Primeiro, trai a si mesmo. Trai a história de dignidade que algum dia aquele jornal, revista, televisão, rádio ou portal talvez tenha tido.
Segundo, trai sua própria missão de perseguir a verdade dos fatos e procurar transmitir o que está acontecendo.
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Terceiro, trai o seu leitor, negando-lhe o esclarecimento necessário para compreender o cenário, construir seu julgamento e fazer as suas opções.
Quarto, trai a consciência da nação permitindo que um embusteiro pratique seu embuste aos olhos de todos sem que lhe seja cobrada a necessária compostura e a submissão à veracidade.
Quinto, trai a democracia ao omitir a falta de decoro que contamina, degenera e emporcalha a circulação das ideias.
Bolsonaro mente que vacina causa Aids, mente sobre o preço dos combustíveis, mente que máscaras causam mal, mente que reduziu o desmatamento da Amazônia, mente que protege o meio-ambiente, mente sobre tratamento precoce para a covid-19, mente que água de coco pode substituir sangue na transfusão, mente que a economia vai bem, mente que seu governo não tem casos de corrupção, mente que o STF o impediu de atuar durante a pandemia, mente que um vírus que causaria 610 mil mortes era “uma gripezinha”.
A lista vai longe. Checagem da agência Aos Fatos, indica que, em 1.038 dias na presidência, Bolsonaro deu 4.284 declarações falsas ou imprecisas.
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Nem Donald Trump, seu ídolo, a quem já disse “I love you” em um dos momentos mais vexatórios da história da república, mentiu tanto.
Mas na boca e nas mãos da imprensa corporativa o verbo “mentir” queima. Não pode frequentar a mesma frase que “Bolsonaro”. Ele não é mentiroso. É “polêmico”. Não é infame. É “exagerado”. Não é abjeto. É “folclórico”. A mídia faz olho branco para o horror. Trabalha noite e dia no processo de normalização da anormalidade.
O problema é que quem não desmente, mente junto. É mentiroso por omissão. O que não o faz menos mentiroso. E o que o faz cúmplice.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo