A Mãe Terra desperta, abraça seus filhos visíveis e invisíveis E finalmente os humanos voltam a ser
Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Talvez seja coerente que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tenha chegado a Glasgow para a 26ª Conferência das Partes (COP 26) sobre a catástrofe climática com 85 carros a reboque, meses depois de declarar que ele é “um cara dos carros” (para detalhes sobre a catástrofe climática, veja nosso Alerta Vermelho n. 11, Apenas Uma Terra). Apenas três países no mundo têm mais carros por pessoa que os EUA, e esses países (Finlândia, Andorra e Itália) têm uma população muito menor que a estadunidense.
Pouco antes de Biden partir para a cúpula do G20, seu encontro com o Papa Francisco e a COP 26, ele fez sua administração pressionar os Estados produtores de petróleo (Opep+) a “fazer o necessário quando se trata de abastecimento” – ou seja, aumentar a produção. Enquanto os Estados Unidos pressionavam a Opep+ para aumentar a produção de petróleo, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) divulgou seu principal relatório sobre as emissões globais. O Pnuma destacou que os países do G20 respondem por cerca de 80% dos gases de efeito estufa globais e que os três maiores emissores de carbono per capita são Arábia Saudita, Austrália e Estados Unidos. Como as populações da Arábia Saudita (34 milhões) e da Austrália (26 milhões) são muito menores que as dos EUA (330 milhões), é claro que emitem volumes muito menores de CO2: Austrália responde por 1,2% das emissões globais de carbono, enquanto a Arábia Saudita responde por 1,8%; já os Estados Unidos é responsável por 14,8%.
Antes da reunião de Glasgow, os líderes do G20 se reuniram em Roma para firmar sua própria abordagem em relação à catástrofe climática. O comunicado que emergiu desta reunião, Declaração dos Líderes do G20 em Roma, foi morno, usando termos como “fazer progressos”, “fortalecer ações” e “aumentar a escala”. De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), a menos que as emissões de carbono sejam reduzidas, é improvável que o objetivo principal de não ter mais do que 1,5 ºC de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais seja alcançado. O IPCC observa que há 83% de chance de atingir essa meta se as emissões de carbono forem reduzidas para 300 gigatoneladas desde agora até o momento em que atingirmos as emissões líquidas de carbono zero (atualmente existem 35 gigatoneladas de emissões anuais de CO2 de combustíveis fósseis). Há apenas 17% de chance de atingir um aumento da temperatura global de não mais do que 1,5 ºC se pudermos reduzir as emissões para 900 gigatoneladas. O IPCC sugere que quanto mais rápido o mundo se mover para emissões líquidas zero, melhor será a chance de evitar níveis catastróficos de aquecimento.
Na reunião da COP 21 de 2015 em Paris, nenhum dos países poderosos sequer pronunciaria a frase “emissões líquidas zero”. Agora, graças ao trabalho dos relatórios do IPCC e às campanhas em massa em todo o mundo sobre a emergência climática, as palavras estão forçosamente na boca dos líderes que prefeririam ser “caras dos carros”. Embora a necessidade de mudar para emissões zero de carbono até 2050 esteja na mesa há alguns anos, a declaração do G20 ignorou isso e escolheu a formulação vaga de que as emissões líquidas devem terminar “até meados do século ou por volta dessa data”. Também havia pouco apetite para falar sobre as emissões globais de metano, que são o segundo gás de efeito estufa antropogênico mais abundante depois do CO2.
Dias antes da reunião da COP 26, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que “é hora de deixar para trás discursos vazios e promessas não cumpridas. Precisamos que leis sejam aprovadas, programas sejam implementados e investimentos sejam financiados de forma rápida e adequada, sem mais delongas”. No entanto, houve um atraso desde a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, no Rio de Janeiro. Partindo da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo (1972), os países do mundo se comprometeram a fazer duas coisas: reverter a degradação do meio ambiente e reconhecer as “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ficou claro que os países desenvolvidos – principalmente o Ocidente, as antigas potências coloniais – haviam consumido muito mais do que sua parcela do “orçamento de carbono”, enquanto os países em desenvolvimento não haviam contribuído tanto para a catástrofe climática e lutaram para cumprir obrigações básicas com suas populações.
A fórmula do Rio – responsabilidades comuns e diferenciadas – pairava sobre o Protocolo de Kyoto (1997) e os Acordos de Paris (2015). Promessas foram feitas, mas não cumpridas. Os países desenvolvidos prometeram o que começou a ser chamado de “financiamento climático”, tanto para mitigar os resultados desastrosos da catástrofe climática quanto para transferir a dependência da energia baseada em carbono para outras formas de energia. O Fundo Verde para o Clima permaneceu muito menor do que o compromisso anual de 100 bilhões de dólares prometido em 2009. A reunião do G20 em Roma não chegou a nenhum consenso sobre o balde vazio; entretanto, é importante reconhecer o forte contraste de que, durante a pandemia, um total de 16 trilhões de dólares em estímulos fiscais foi desembolsado entre março de 2020 e março de 2021, principalmente nos países desenvolvidos. Dada a improbabilidade de uma discussão séria sobre o financiamento do clima, é provável que a COP 26 seja um fracasso.
Tragicamente, o processo da COP 26 foi arrastado para a matriz de tensões geopolíticas perigosas, impulsionadas em grande parte pelos Estados Unidos em sua busca para impedir o avanço científico e tecnológico da China. O carvão está no centro do debate, com o argumento de que, a menos que a China e a Índia reduzam suas usinas termelétricas, nenhuma redução de carbono será possível. Nas Nações Unidas em setembro, o presidente da China, Xi Jinping, disse que “a China se esforçará para atingir o pico das emissões de dióxido de carbono antes de 2030 e alcançar a neutralidade de carbono antes de 2060”; ele também afirmou que a China “não construiria novas usinas movidas a carvão no exterior”. Essa foi uma declaração monumental, muito à frente de qualquer uma das promessas feitas pelas outras grandes potências globais. Em vez de construir sobre esse compromisso, o debate impulsionado pelo Ocidente tem sido em grande parte difamar os países em desenvolvimento, incluindo a China, e culpá-los pela catástrofe climática.
Olhando para as evidências do IPCC, o economista John Ross mostrou recentemente que, de acordo com a própria proposta dos Estados Unidos para reduzir as emissões atuais em 50-52% em relação aos níveis de 2005, o nível de emissões per capita de CO2 do país ainda seria de 220% do total média em 2030. Se os EUA alcançassem sua meta, as emissões de carbono per capita do país em 2030 seriam 42% maiores do que as da China hoje. Os EUA sugeriram que gostariam de ver uma redução de 50% das emissões até 2030; uma vez que tomaria a linha de base nos níveis atuais desiguais de emissões, seria permitido emitir 8 toneladas de CO2, a China teria direito a 3,7 toneladas, o Brasil a 1,2 toneladas, a Índia a 1 tonelada e a República Democrática do Congo a 0,02 toneladas. Do jeito que está, mostra Ross, as emissões de CO2 per capita da China são apenas 46% das emissões dos EUA, enquanto outros países em desenvolvimento emitem muito menos (Indonésia, 15%; Brasil, 14%, Índia, 12%). Para obter mais detalhes, siga o Climate Equity Monitor desenvolvido pela MS Swaminathan Research Foundation e pelo National Institute of Advanced Studies (Bengaluru, Índia).
Em vez de se concentrar na necessária transição energética, os países desenvolvidos adotaram uma propaganda grosseira contra um punhado de países em desenvolvimento como a China e a Índia. O relatório Fazendo a Missão Possível: Entregando uma Economia de Emissões Líquidas Zero, da Comissão de Transição de Energia, estima que o custo de uma transição será de 0,5% do PIB global em 2050, uma quantia insignificante em comparação com as alternativas catastróficas, como o desaparecimento de várias pequenas nações insulares e o aumento de padrões climáticos extremamente erráticos.
O custo da transição diminuiu devido ao declínio nos custos das tecnologias-chave (parques eólicos onshore, células solares fotovoltaicas, baterias, etc.). No entanto, é importante reconhecer que esses custos são mantidos artificialmente baixos por causa dos pequenos salários pagos aos trabalhadores dos principais minerais e metais que impulsionam essas tecnologias (como os de cobalto na República Democrática do Congo) e por causa do escasso pagamentos de royalties cobrados pelos países do Sul por essas matérias-primas. Se os custos reais fossem pagos, a transição seria mais cara e os países do Sul teriam recursos para pagar pela mudança sem depender do fundo climático.
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social estará em Glasgow, juntamente com delegados da Assembleia Internacional dos Povos. Estaremos em vários eventos para avaliar o sentimento dos movimentos das pessoas. Na preparação para a conferência, Nnimmo Bassey, da Fundação Saúde da Mãe Terra (Benin City, Nigéria), e eu conversamos sobre a catástrofe juntos. Bassey escreveu um poema poderoso, ‘Voltar a ser’, que colocamos um trecho aqui:
A batalha continua
Quem deve devorar o orçamento de carbono,
Envolver a Mãe Terra em fardos infinitos de poluição?
Cuja tarefa é acumular dívida climática
E quem será escravo do carbono?
Colonizar a biosfera
Obliterar a etnoesfera
Esperanças mapeadas em geografias coloniais de morte
Escarificado por esporte, com armadilhas explosivas e flutuando no sangue
…
O sonho se foi, o galo cantou,
O traidor busca um galho para simular um balanço pendular
Um ou dois derramam uma lágrima para a imprensa
Enquanto o falcão desliza suavemente sobre os ventos do canto fúnebre em busca de uma presa infeliz
Tambores fúnebres golpeados por bíceps pulsantes de dor
Flautas sussurram um canto fúnebre há muito esquecido, emergindo de repente das profundezas de anos de histórias apagadas
À medida que filhas e filhos da terra recolhem pedaços de colinas sagradas, rios, florestas
A Mãe Terra desperta, abraça seus filhos visíveis e invisíveis
E finalmente os humanos voltam a ser.
Cordialmente,
Vijay.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo