Transnacionais continuam fazendo uso do seu poder de lobby para impedir que sejam responsabilizadas
Em fevereiro de 2018, após dois dias de chuvas intensas, moradores das cidades de Barcarena e Abaetetuba no Pará viram seus rios e igarapés tomarem uma cor avermelhada. As águas haviam sido contaminadas com rejeitos de bauxita e efluentes industriais da refinaria de alumina Hydro Alunorte, pertencente à mineradora norueguesa Norsk Hydro.
A análise realizada pelo Instituto Evandro Chagas (IEC) na região, após a contaminação, encontrou no meio ambiente da região níveis consideráveis de metais tóxicos como arsênio, chumbo e cádmio, entre outros. De lá pra cá, dezenas de milhares de pessoas de comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas têm sofrido as consequências da contaminação, direta ou indiretamente. Logo no começo, pessoas começaram a apresentar dores abdominais, cefaléia, alterações na pele, diarreia, náuseas e vômitos.
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Mais recentemente, moradores de Barcarena vêm denunciando malformação em recém-nascidos. Além disso, as comunidades perderam suas fontes de água e de alimentação, pois a quantidade de peixes e camarões ou diminuiu ou ficou contaminada.
Ao Ministério Público Federal, a empresa admitiu que houve vazamento da sua planta de água não tratada, inclusive através de uma tubulação que não contava com autorização.
A justiça e a reparação não chegaram para os atingidos pelo crime socioambiental, e não foi por falta de denúncias e luta. A história dessa grave contaminação na região do nordeste paraense segue o mesmo roteiro de crimes como o da Samarco, Vale e BHP Billiton na bacia do Rio Doce (e que acaba de completar 6 anos impune): descaso do governo estadual, intervenção da empresa na definição de quem é atingido e quem não é, reparações insuficientes, entre outros elementos acabam negando às comunidades o acesso à justiça e reparações mínimas.
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Diante do cenário de impunidade, mais de 40 mil pessoas representadas na Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), resolveram levar o caso à Justiça holandesa (onde estão sediadas as subsidiárias que controlam as entidades que operam no Pará), em fevereiro deste ano.
Cícero Pedrosa Neto, mestrando em Sociologia e Antropologia pela UFPA, que vem acompanhando o caso desde o início, destaca que há muito mais pessoas atingidas do que as que entraram com a ação na justiça holandesa, em parte também pela presença de outros empreendimentos industriais contaminantes. Em 2018, uma Comissão Parlamentar de Inquérito identificou 26 crimes ambientais em Barcarena, desde o ano de 2000.
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“A contaminação atingiu os rios, os igarapés, e portanto todo o modo de vida tradicional daquela população que sempre viveu em relação com os rios, sempre viveu do extrativismo e hoje tem os seus modos de vida impactados por conta justamente desse tipo de contaminação. Então, 40 mil pessoas é um recorte daquela realidade, porque na verdade toda a população de Barcarena sofre com os impactos do polo industrial da cidade; assim como sofre com contaminações no próprio corpo por conta da emissão de poluentes atmosféricos e da contaminação dos aquíferos, do lençol freático e de tantas outras formas possíveis de contaminação de corpos humanos e não humanos ali naquela realidade”, explica Pedrosa Neto, que também é repórter multimídia da Agência Amazônia Real.
Em 2012, a Amigos da Terra Brasil realizou o documentário Indústria do alumínio: A floresta virada em pó, em que mostra casos de destruição social e ambiental provocados por transnacionais no Pará e Maranhão, onde está concentrada mais de 80% da bauxita explorada no Brasil.
Responsabilidade às avessas
Enquanto transnacionais responsáveis pelos piores crimes socioambientais no mundo usam espaços como a atual COP26, como palanque para se venderem como “sustentáveis”, nos países do Sul Global continuam impondo seu poder para se beneficiar de legislações e órgãos de controles frágeis e governos locais que priorizem os interesses dessas empresas em detrimento da vida das populações e de seus direitos.
Essas práticas, protegidas também por uma arquitetura jurídica de impunidade, são as que dão lugar a crimes socioambientais de proporções catastróficas. E como cúmulo desse processo enormemente assimétrico, as corporações transnacionais continuam fazendo uso do seu poder de lobby para impedir que sejam devidamente responsabilizadas, forçando as comunidades que, em muitos casos, tiveram sua saúde e meios de vidas destruídos, a se organizarem em busca de reparação e justiça.
A luta por um tratado internacional para pôr fim aos atropelos das corporações
Em 2014, após décadas de lutas de movimentos sociais, organizações ambientalistas, sindicatos em nível nacional, regional e internacional, o Conselho de Direitos Humanos da ONU criou, por meio da Resolução 26/9, o Grupo de Trabalho Intergovernamental das Nações Unidas sobre Empresas Transnacionais e Outros Empreendimentos de caráter transnacional com Relação aos Direitos Humanos.
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Segundo a própria resolução, o espaço tem o objetivo de criar um "instrumento juridicamente vinculante para regulamentar as atividades de empresas transnacionais e outras empresas no direito internacional dos direitos humanos”.
Desde o começo das negociações, o acompanhamento popular tem sido fundamental para garantir que os rascunhos que vêm sendo feitos sobre o tratado reflitam as necessidades que foram colocadas nessa resolução inicial.
A participação de movimentos sociais, organizações da sociedade civil, sindicatos e comunidades atingidas pelas atividades de empresas transnacionais tem sido articulada na Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade, uma rede com mais de 250 entidades em todo o mundo.
De 25 a 29 de outubro foi realizada uma nova rodada de negociações do grupo de trabalho, para revisar o terceiro rascunho do tratado vinculante, publicado em 17 de agosto deste ano. Tanto o rascunho como o processo de negociações vinham recebendo críticas por não incorporarem os posicionamentos apresentados pelas organizações da sociedade civil.
Entre os principais riscos do processo, estão as tentativas de retirar o caráter vinculante do tratado e de tirar o foco das corporações transnacionais. Em relação a esta, que foi a sétima rodada de negociações, Raffaele Morgantini da organização CETIM (Centro Europa - Terceiro Mundo, no acrônimo em francês), denunciou que “alguns Estados ocidentais e representantes de empresas defenderam repetidamente a relevância dos atuais marcos voluntários, e até fizeram tentativas frustradas de sugerir alternativas ao Tratado Vinculante, como parte de uma estratégia liderada pelos EUA para enfraquecer o processo e promover caminhos alternativos e fúteis”.
“Os marcos voluntários são justamente o oposto do que queremos. A gente luta por um tratado juridicamente vinculante, por um mecanismo que garanta a responsabilização das corporações pelos crimes cometidos. E tanto os EUA como a União Europeia, que tem estados com o maior número de sedes de transnacionais, defendem a ideia de que deveriam prevalecer os princípios orientadores, os marcos voluntários”, denuncia a coordenadora internacional do programa JERN (Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo) da Amigos da Terra Internacional, Letícia Paranhos, que também participou da sétima sessão do grupo de trabalho intergovernamental.
Outra das preocupações que surgiram na recente sessão foi a possibilidade de garantir transparência e participação da sociedade civil com a criação de um “Grupo de Amigos da Presidência”, exercida pelo Equador no grupo de trabalho, para trabalhar no texto do tratado até a próxima sessão.
“Ficou uma incerteza muito grande com o formato proposto pela presidência do grupo de trabalho dos chamados ‘amigos da presidência', que serão os responsáveis pela construção de consenso e de formulação do próximo texto; não sabemos como a sociedade civil vai ser consultada”, conta Letícia Paranhos.
Houve ainda um golpe promovido pela União Europeia (UE), como narra Letícia, que foi a permissão da ingerência das corporações nesse grupo de amigos: “A UE fez uma sugestão para que as empresas sejam consultadas por esse grupo, uma proposta que nós não aceitamos, mas acabou passando, e que significa que agora vamos ter que lidar com esses atores que são os principais interessados em que não existam regras para empresas”.
O papel do Estado brasileiro durante as negociações
A União Europeia também propôs a retirada da palavra “obrigações” do artigo 2 do rascunho do tratado, em que se afirmava que o objetivo do instrumento é “esclarecer e assegurar o respeito e o cumprimento das obrigações de direitos humanos das empresas”.
O Brasil acompanhou a UE nessa proposta, sugerindo trocar "obrigações" por “responsabilidades”. O único Estado que se posicionou para manter o conceito foi a Palestina. O governo Bolsonaro também se opôs à inclusão da Convenção 190 da OIT no preâmbulo do texto, em um fragmento que enfatiza a “necessidade de os Estados e empresas comerciais integrarem a perspectiva de gênero em todas as suas medidas”. A mencionada convenção determina aos Estados “erradicar a violência e o assédio em todas as suas formas do mundo do trabalho”.
O pedido está em consonância com as políticas implementadas pelo governo contra essa convenção, como tem denunciado a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
O Brasil também defendeu que o termo “violação” fosse substituído em todo o documento por “abuso”. No geral, as intervenções do Brasil foram no sentido de esvaziar e tornar mais débil o documento, substituindo palavras e conceitos jurídicos e fazendo o jogo das transnacionais.
Entre os aspectos positivos da última sessão do grupo de trabalho, as entidades que integram a Campanha Global destacaram o reconhecimento de vários Estados do papel que entidades da sociedade civil vêm cumprindo no processo de negociações. Além disso, “em nossa avaliação, vários elementos que precisam estar presentes nesse documento voltaram para serem debatidos não só pela sociedade civil mas também pelos Estados”, explica Letícia Paranhos.
Entre esses elementos estão “a primazia dos direitos humanos sobre os acordos de comércio e investimentos, a necessidade de obrigações para as empresas transnacionais, e que o alcance do tratado esteja centrado nas empresas transnacionais e de caráter transnacional”. São pontos que a Campanha Global considera chave, mas que haviam sumido dos rascunhos de projeto do Tratado desde 2017.
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Única deputada brasileira a participar da sessão, Fernanda Melchionna (PSOL/RS) integra a Rede Interparlamentar Global que pressiona pelo estabelecimento do tratado vinculante. “Nós, da rede interparlamentar, junto aos movimentos sociais, a campanha global, queremos que a vida esteja acima do lucro das grandes corporações. Nós queremos um tratado que acabe com a impunidade dessas grandes empresas. Nós queremos garantia pras populações dos nossos países. Por isso eu estou aqui em Genebra, de novo, lutando pra que tenha uma resolução que diga isso”, disse a deputada.
Outro dos parlamentares brasileiros que defende a criação de um tratado internacional vinculante de regras para transnacionais é o deputado federal Helder Salomão (PT-ES), que presidiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara em 2019 e 2020. Salomão lembrou que o Brasil está em dívida nos seus compromissos internacionais com respeito aos direitos humanos, desde antes de Bolsonaro tomar posse.
“Em 2017, o Brasil assumiu diversas responsabilidades e recomendações sobre direitos humanos no âmbito da Revisão Periódica Universal. dentre elas o compromisso de elaborar um plano de ação sobre empresas e direitos humanos. De lá pra cá, poucos passos foram dados. O Brasil precisa avançar muito nesse debate em sintonia com a comunidade internacional”, disse o deputado federal.
A importância de pôr fim a marcos voluntários
“A Hydro é uma empresa industrial líder que constrói negócios e parcerias para um futuro mais sustentável. Desenvolvemos indústrias que são importantes para as pessoas e para a sociedade”. Essa é a definição que consta no site da mineradora norueguesa. É assim como ela se apresenta ao mundo.
A falta de contato dessa frase com a realidade é conhecida por quem sofre e acompanha a realidade no nordeste paraense, especialmente em Barcarena, como Pedrosa Neto. “A Noruega tem toda uma suposta preocupação com o meio ambiente, toda uma ideia e uma imagem que eles precisam vender internacionalmente, mas que na verdade aqui quando a gente vai olhar pra presença de seus empreendimentos no Sul Global, a gente vai ver que essa política está muito restrita aos muros de Oslo”, critica o jornalista.
Ele tem poucas expectativas em relação à obtenção de justiça no caso Hydro. “Da justiça eu acho que dá pra esperar muito pouco, porque sempre há uma grande desproporção porque você tem um escritório de advocacia com dois advogados que defendem uma comunidade (que não tem dinheiro pra pagar as as custas processuais), com ações muito bem fundamentadas, muito bem argumentadas, mas em compensação a Hydro contrata os melhores juristas ambientais do país e até de fora do país. Então é uma luta que, de fora a fora como a gente diz aqui, é desigual né? É completamente desigual”, lamenta Pedrosa Neto.
A garantia do acesso à justiça por parte de atingidos é um dos focos dos debates sobre o tratado. "O acesso à justiça, recursos e reparação tornou-se uma luta geracional repleta de obstáculos", diz Joseph Purugganan, da Focus on the Global South. "Diante das assimetrias de poder que prevalecem na maioria dos países, a proteção dos indivíduos e comunidades afetadas, através do estabelecimento de mecanismos robustos de acesso à justiça e reparação deve ser uma prioridade deste processo", argumenta Purugganan.
E é evidente que para aprimorar os mecanismos e instituições de justiça, ou fazer com que eles sejam devidamente implementados e respeitados, são necessários sistemas políticos voltados prioritariamente para os interesses de seus povos, e não das corporações com grande poder econômico.
A própria situação de contaminações sistemáticas em Barcarena responde a essa lógica, como afirma Pedrosa Neto: “Bacarena é um exemplo singular dessa herança desenvolvimentista da ditadura militar aqui na Amazônia, que também é repercutida em Tucuruí com a hidrelétrica e em Carajás, porque todos foram grandes projetos paridos nesse momento”.
O futuro das comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas nessa região do Pará está completamente comprometido. A saúde e os meios de vida da população foram fortemente impactados, assim como ocorreu com as centenas de milhares de pessoas que vivem na bacia do Rio Doce.
Os Estados que lutam por manter tudo como está, no Grupo de Trabalho Intergovernamental sobre Transnacionais e Direitos Humanos, precisam parar de ignorar e menosprezar as vidas de tantas populações atingidas. Isso vale especialmente para o Brasil, cujo governo, em função dos crimes que impactaram nos últimos anos o país, deveria estar à frente dessa luta, em vez de cumprir um vergonhoso papel de defesa dos interesses dos mais poderosos contra os da sua própria população.
Para continuar somando esforços e ferramentas para esta luta, a Amigos da Terra Brasil lançou recentemente a cartilha popular “Chega de Impunidade Corporativa no Brasil!”, com textos que resumem de forma didática a importância da luta por um tratado vinculante sobre transnacionais e direitos humanos, assim como por um marco normativo nacional de combate à impunidade corporativa.
*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo