O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, patrimônio mundial reconhecido pela Unesco em 2001 e localizado no estado de Goiás, está novamente sob ameaça. Em outubro deste ano, chegou à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL) de autoria do deputado Delegado Waldir (PSL-GO) que propõe a reversão de um decreto assinado em 2017 pelo então presidente Michel Temer.
O objetivo é reduzir em 73% a área de conservação, passando dos atuais 240 mil hectares para 65 mil hectares, ampliando a fronteira agrícola no noroeste do estado de Goiás.
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Comunidades locais e políticos que lutaram pela ampliação do parque, criado em 1961, dizem estar preocupados com a possibilidade de retrocesso e apontam mais um episódio de alinhamento entre a bancada ruralista e o governo federal. O embate também opõe novamente o setor do agronegócio, especialmente a pecuária e a monocultura da soja, e a preservação da natureza – neste caso, o Cerrado, um dos biomas mais ameaçados no Brasil.
Porém, a resistência dentro do Congresso Nacional tende a ser grande, visto que já há iniciativas contrárias ao PL tramitando dentro do Senado. No caso, o PL 2847/2021, de autoria do senador Jorge Kajuru (Podemos-GO), que até abril deste ano era aliado de Jair Bolsonaro (sem partido) e faz parte de um partido que costuma acompanhar o governo nas votações da Casa.
Kajuru alega que o objetivo da sua proposta é justamente “dar sustentação jurídica ao decreto de 2017”. Em entrevista ao Brasil de Fato, o senador também disse que a tentativa de diminuir a área de preservação é apenas mais uma amostra dos “setores não comprometidos com a causa ambiental”. Ele também acredita que o PL enviado por Waldir, que ainda não foi colocado em pauta pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não avançará no Senado mesmo que prosperar na outra Casa.
O senador também constata que a questão está inserida nas políticas ambientais conduzidas nos últimos anos: “É fato que, desde o início do atual governo, são muitas as iniciativas baseadas no negacionismo ambiental, como essa ofensiva contra a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros”.
A fala de Kajuru reverbera também em políticos posicionados mais à esquerda, como o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que encara a ameaça contra o parque como mais uma “ação articulada” entre latifundiários e representantes eleitos, “gente que acha normal continuar botando fogo na Amazônia”, mesmo diante da cobrança insistente de organismos internacionais por políticas ambientais mais eficientes.
“Vemos com muita preocupação qualquer iniciativa que tente, em um momento grave como esse que estamos atravessando, diminuir áreas de parques que estejam consolidados e que desrespeitem direitos das populações locais, como quilombolas e indígenas”, comenta Braga.
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Argumentos econômicos
A principal justificativa apresentada pelo Delegado Waldir em seu projeto é de a ampliação ser prejudicial a agricultores e posseiros locais, argumento refutado por representantes de organizações de moradores da região, como a Associação Quilombola Kalunga (AQK). Os quilombolas alegam que apenas poucas famílias se beneficiariam com a renda gerada pelas monoculturas.
Natália dos Santos Rossi, secretária da AQK, ressalta que os quilombolas ainda praticam a roça e queimadas controladas para sua agricultura de subsistência, mas há um esforço coletivo para absorver métodos de cultivo menos prejudiciais à natureza, como a agrofloresta. Ela também explica que os Kalunga lutam para regularizar suas terras em paralelo ao processo do parque, mas que há uma conexão evidente, já que eles são “protetores desses lugares e das fontes de água”.
“Nós fomos encurralados na parte onde não era legal para a plantação e agora nós temos algumas possibilidades de plantar nessas áreas. Então, as pessoas se vêem no direito de chegar mais para perto, de nos coagir mais ainda”, relata Natália, se referindo ao aumento de invasões e assédios aos territórios quilombolas, que também ameaçariam as bacias hidrográficas da localidade: “a nossa caixa d'água é aqui. Quem vive sem água?”, questiona.
Tanto os Kalunga, quanto outros moradores de cidades como Cavalcante, Teresina de Goiás e Alto do Paraíso de Goiás, defendem a ampliação do parque porque já experimentam o retorno financeiro do turismo sustentável. A Chapada dos Veadeiros é um destino cada vez mais comum para as práticas do turismo de aventura e ecoturismo, e ganhou novo impulso após o início da pandemia.
“O turismo agora na pandemia cresceu, porque acho que o brasileiro está olhando mais para a Chapada dos Veadeiros. Como eles não estão podendo conhecer o mundo, acabam vindo mais para dentro do Brasil e a Chapada dos Veadeiros está em alta', avalia Renato Teixeira, guia turístico há 5 anos, especializado em levar os visitantes mais intrépidos a locais de difícil acesso ou de risco elevado.
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O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra este e outros parques nacionais, divulgou em 2020 um estudo que aponta uma tendência de alta percentual de visitas nas unidades de conservação. Em 2016, por exemplo, o ICMBio registrou o acesso de 8,2 milhões de turistas nessas unidades, um aumento de cerca de 430% com relação ao ano de 2006.
O fomento ao turismo local é uma das principais justificativas defendidas pelo decreto instituído em 2017, que ainda pode ter o apoio de outro projeto, o PLC 116/2018, de autoria do deputado Pedro Chaves (MDB-GO). O projeto prevê a criação do Fundo Nacional de Apoio à Região da Chapada dos Veadeiros (Funveadeiros), que administraria recursos obtidos de de entidades públicas, privadas, nacionais e internacionais, e seria usado para, por exemplo, capacitar atividades turísticas e fomentar o comércio de produtos locais.
Risco de queimadas
Em setembro deste ano, período de grande seca e estiagem em Goiás, diversos focos de incêndio queimaram cerca de 36 mil hectares de vegetação da Chapada dos Veadeiros, segundo o ICMBio. Há diversos inquéritos ainda abertos pela Polícia Civil do estado para apurar a autoria dessas queimadas, que são investigadas como possíveis “ações criminosas” de fazendeiros da região.
No ano passado, após duas semanas de incêndio, foram destruídos 75,4 mil hectares dentro do mesmo perímetro, também de acordo com o ICMBio. À época, as chamas só foram contidas após diversas operações noturnas de brigadistas e bombeiros, e o início do período de chuvas. O fogo teria começado em uma propriedade rural no município de Cavalcante, no interior da Área de Proteção Ambiental (APA) de Pouso Alto.
Na opinião de Natália, o aumento do número de queimadas nos últimos anos tem relação com o aumento das plantações de soja e da criação de bovinos, que poderiam procurar formas de estender seus domínios respaldados pela certeza de impunidade por parte dos órgãos de fiscalização.
“E também parece uma forma de protesto para dizer que não está tão preservado, que é uma preservação ilusória, porque tem muitos pontos de fogo que sabemos que é colocado de forma criminosa”, acusa a quilombola, que também reclama da dificuldade em identificar a autoria dos incêndios.
Pressões fundiárias
A advogada especializada em direito ambiental Patrícia Silva afirma que os ataques às legislações de áreas de preservação não são incomuns. Ela cita como exemplo o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, no Piauí, que começou a ser demarcado em setembro deste ano e cujo processo de desafetação ainda é questionado pela população.
Um Projeto de Lei de 2015 ampliou a área de conservação do parque, “o que iniciou um processo de regularização fundiária, que é sempre muito complexo, porque a nossa legislação é historicamente defasada nesse assunto”, explica Patrícia. Ela também indica outros fatores, como o desentendimento sobre indenizações e a grilagem para o desfecho: “estranhamente, apenas os sojicultores se beneficiaram com o processo”.
Segundo Patrícia, a morosidade desse tipo de processo atinge principalmente a população mais pobre dessas regiões que ficam sem espaço de cultivo e com a sensação de que não serão indenizadas. Para a advogada, quem tem condições de falar com um parlamentar para reivindicar melhores acordos, geralmente, são os grandes proprietários de terra, “embora nos PLs, a justificativa costume ser os prejuízos dos trabalhadores campesinos e pequenos proprietários”, destaca.
Embora reconheça o desequilíbrio na disputa por territórios, Natália tem esperanças de que os políticos, inclusive Bolsonaro, se conscientizem sobre as vantagens de preservar a natureza para o futuro do país, partindo do caso da Chapada dos Veadeiros. “Talvez falte orientação de mais pessoas e conhecimento dos próprios políticos, porque a monocultura beneficia duas ou três pessoas. Já o parque ampliado vai beneficiar a região por completo, quem dirá o município e o país”, conclui.
Edição: Vinícius Segalla