A pandemia de covid-19 é um dos maiores desafios vivenciados no atual contexto de globalização, pegou de surpresa muitos países e seus sistemas de saúde. Tão rápida quanto os meios de transportes que levaram a doença a todos os continentes do planeta, a doença provocou uma corrida na reestruturação dos sistemas de saúde.
Buscou-se construir barreiras sanitárias que visavam barrar a circulação do vírus, bem como realocar recursos, profissionais de saúde e aumentar o número de leitos para hospitalização dos adoecidos. A pandemia afetou não só o setor saúde, mas foi muito além, provocando crises por onde quer que passasse.
A grande transmissibilidade do vírus, a inexistência de tratamento precoce e a falta de vacina no início da pandemia obrigaram as autoridades sanitárias a tomar como medida primordial para o controle da pandemia o isolamento e o distanciamento social. Este último é um dilema até hoje, virou disputa política nacional e internacionalmente, tendo como debate central a economia e seus desdobramentos.
A atual pandemia de covid-19 também fez com que muitas diferenças existentes no nosso país fossem reforçadas, uma das que mais chamam atenção foi o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas. Dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad/IBGE) demonstram que durante a pandemia os 40% mais pobres da população tiveram sua renda familiar oriunda do trabalho reduzida em 30%.
A diminuição da renda das famílias brasileiras forçou muitas pessoas a se submeterem a insalubres condições e relações de trabalho, inclusive, a trabalharem no mercado informal, como vendedores ambulantes, motoristas e entregadores de aplicativos, como alternativa para sobreviver.
Essas formas de trabalho não fornecem muitas garantias, como o seguro desemprego, o 13º salário, férias e uma carga horária de trabalho digna, e acaba afetando negativamente a saúde das pessoas.
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Além da perda de parte da renda, houve um aumento significativo do desemprego na sociedade em geral. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 14,8 milhões de pessoas seguem buscando um emprego em todo o Brasil - o maior recorde de registros desde 2012. A vulnerabilidade social que já existia foi agravada pela pandemia e pela crise política que o Brasil enfrenta, piorando as condições de moradia e de vida, principalmente dos mais pobres.
Tornou-se mais frequente o compartilhamento de casas entre pessoas conhecidas e familiares na tentativa de se dividir os custos residenciais como aluguel, alimentação e outras despesas.
Os adensamentos comunitários (casas muito próximas, becos e vielas), que dificultam a circulação de ar, a entrada da luz solar, e os precarizados serviços de água, esgoto e lixo também impactam nas condições de vida de seus moradores.
A diminuição da renda familiar, por sua vez, torna a alimentação adequada cada vez mais escassa à medida que o desemprego e o mercado informal de trabalho ganham espaço. Tal cenário favorece a manifestação não só de doenças crônicas, como a hipertensão e diabetes, mas também de doenças biopsicossociais como depressão e ansiedade, além do uso de drogas.
Tuberculose
Todo esse cenário, existente em milhares de comunidades e favelas, dificulta o acesso à saúde da população e favorece a ocorrência de outras doenças, como a tuberculose. Além de o desenvolvimento de covid-19 ser um fator de risco para tuberculose e vice-versa, pacientes com tuberculose e covid-19 têm 25% menos chance de se recuperar de covid (SY, HAW e UY, 2020). Além disso, pacientes com sequelas pulmonares causadas pela covid-19 podem apresentar maior risco de desenvolver tuberculose no futuro.
A tuberculose é uma doença infectocontagiosa causada por um microrganismo chamado de Mycobacterium Tuberculosis, mais conhecido como Bacilo de Koch (BK), e tem o homem como principal hospedeiro. Uma pessoa com o bacilo infecta em média de dez a 15 pessoas em um ano, isso em um contexto sem pandemia.
A doença, na maioria dos casos, é transmitida por via aérea através da inalação de gotículas que possuem os bacilos expelidos pela pessoa infectada nas vias respiratórias (pulmonar ou laríngea) ao falar, espirrar ou mesmo tossir. Na prática, nem todos os contaminados se tornam enfermos, pois é necessário que o indivíduo esteja com sua imunidade debilitada.
Logo, indivíduos acometidos pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), que tenham hábitos não saudáveis como uso drogas ou que possuam outras doenças imunodepressoras como diabetes, silicose e desnutrição são mais propícios a desenvolver a tuberculose.
A tuberculose é uma doença comumente associada a fatores sociais, pois, geralmente, os mais vulneráveis ao adoecimento vivem em moradias insalubres e situação de pobreza, que refletem negativamente na capacidade autoimune do corpo.
A doença já foi conhecida como “a praga 36 dos pobres” e tem incidência no país desde os tempos coloniais, quando o europeu trouxe o bacilo para o território que hoje compreende o Brasil e, ao ter contato com as populações nativas, dizimou milhares de vidas. Porém, ganhou destaque na saúde pública ao ser identificada, no final do século XIX e início do XX, como a principal causa por mortes na cidade do Rio de Janeiro.
Atualmente trata-se de uma doença que, por lei, é obrigatória a comunicação dos casos às autoridades de saúde pública em todo território brasileiro, ou seja, de notificação compulsória. A detecção dos casos de tuberculose pulmonar é a principal etapa de controle da doença, já que quanto mais rápido for diagnosticado e tratado, mais fácil será romper o ciclo de transmissão do bacilo.
Durante a pandemia
No ano de 2020, com a pandemia ocorrendo por todo o mundo, ficou extremamente difícil combater a tuberculose. Os sistemas de saúde voltaram seus esforços para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus e outras doenças ficaram descobertas.
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Houve também uma precarização dos serviços de saúde, inclusive no aspecto da saúde da família, com atrasos de salários aos profissionais de saúde, grande rotatividade destes e sobrecarga de trabalho para os que permaneceram, o que afetou a assistência e o cuidado de outras atividades ligadas à atenção básica.
Toda essa conjuntura impactou o enfrentamento da Tuberculose que vinha sendo conduzido principalmente pela Atenção Básica e tinha como principal estratégia o Tratamento Diretamente Observado (TDO), popularmente conhecido pelos Agentes Comunitários de Saúde como DOTS (sigla em inglês de Directly Observed Treatment Short Course).
O TDO estimula a criação do vínculo de uma atuação humanizada dos profissionais de saúde com os pacientes, onde é inserido nesse tratamento a observação da ingestão dos medicamentos pelo paciente, sob a supervisão de um profissional de saúde em locais e horários previamente acordados.
As unidades básicas de saúde tiveram que se readequar ao novo contexto, os profissionais que lá atuam têm participado ativamente na campanha de vacinação para o enfrentamento da covid-19 e tiveram que readequar seus processos de trabalho devido ao isolamento social; como solução parcial, muitos profissionais passaram a fazer uso de tecnologias digitais, para acompanhar seus usuários, muitos adoeceram e as equipes ficaram desfalcadas.
As notificações de novos casos de tuberculose também seguiram ocorrendo, inclusive de infecções concomitantes de covid-19 e tuberculose, sendo muito mais letais. Porém, foi notável a diminuição em muitos estados da notificação de tuberculose quando comparado com anos anteriores. Especialistas acreditam que a reduzida demanda por diagnóstico e tratamento terá influência nas futuras taxas de incidência e mortalidade, isso porque, inclusive, há semelhança entre os sintomas de ambas as doenças.
Segundo o Sistema Nacional de Agravos Notificáveis/TABNET Rio de Janeiro, o Caju é um dos cinco bairros mais afetados por tuberculose na cidade do Rio de Janeiro, e segundo o Censo 2010, é também um dos mais favelizados da cidade - onde 4 a cada 5 moradores vivem em comunidades. A tuberculose no Caju manteve-se com o número médio de notificações dos últimos 10 anos.
Enquanto a média de cura dos últimos dez anos foi de 72,4%, no ano de 2020, o desfecho como cura representou apenas 47,3% dos casos, segundo os dados da prefeitura do Rio de Janeiro.
Estes números ajudam a entender parte do contexto que o bairro e os profissionais de saúde que lá atuam vivenciam, mas deve-se considerar a subnotificação (já que os profissionais estão realizando outras atividades ligadas ao combate a pandemia que, no momento, são entendidas como prioridade).
Desta forma, o debate sobre a tuberculose e a covid-19 é muito mais profundo e sem dúvidas ultrapassa o setor saúde. O enfrentamento da tuberculose passa pela adoção de medidas como campanhas de conscientização da população sobre, mas deve ir além e incorporar ações que diminuam as desigualdades socioeconômicas e uma política de habitação e de urbanização eficaz, capaz de dar condições dignas de vida a todos.
*O artigo foi publicado originalmente na 13ª edição do Radar Covid-19 Favela, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
**Reinaldo Dantas Lopes, professor de geografia do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e PVCSA, geógrafo do Laboratório de Informações e Registro da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), mestrando no programa em Epidemiologia em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz).
**Felippe de Oliveira Cezário - Coodernador do Serviço de Vigilância em Saúde da Rocinha, mestrando em epidemiologia e saúde pública pela ENSP/Fiocruz.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse