É nossa responsabilidade também levar um possível governo Lula para um lado mais progressista.
Mesmo antes de seu lançamento oficial, em 4 de novembro, o filme Marighella tem causado dores de cabeça ao governo federal.
Ainda nesta semana, antes de chegar às telas dos cinemas de todo o país, ganha uma sessão especial no assentamento Jacy Rocha, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Prado, na Bahia e logo depois, em uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em São Paulo.
"O que eu puder fazer para aproximar o filme das pessoas pelas quais Marighella lutou, as pessoas veem na luta de Marighella a sua luta no Brasil de hoje, o que eu puder fazer, eu vou fazer", diz Wagner Moura.
Convidado desta semana no BdF Entrevista, Wagner Moura segue preparado para a porrada. Em uma conversa para o Brasil de Fato, ainda em 2019, quando planejava a estreia do filme, o diretor apontou que as críticas a ele, aos atores e ao filme, seriam inevitáveis. Os dois anos de espera até que a película pudesse estrear, não mudaram muito o cenário.
“Isso para mim é muito significativo do momento pelo qual o Brasil passa. Marighella era um homem do seu tempo e que continua inspirando, como eu disse, todos aqueles que acreditam na justiça social, um homem que sempre esteve ao lado dos mais pobres, dos mais fracos, dos oprimidos, dos trabalhadores, um lutador pelos direitos civis, um democrata”.
O filme, que retrata os últimos cinco anos de vida de Carlos Marighella, o guerrilheiro baiano que foi de deputado federal pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) a líder da luta armada nos anos 1960, está em um giro de pré-estreias pelo país - já passou por Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo.
Na última semana, o secretário de Cultura, Mario Frias, foi às redes sociais para confrontar uma crítica do diretor do filme, Wagner Moura, ao presidente Jair Bolsonaro: “Achou que ia pegar comigo verba pública para esse lixo panfletário? Pede para sair, moleque!”, disse ele.
"É um filme sobre um homem pelo qual eu tenho uma admiração enorme, um personagem da história do Brasil que teve a sua história apagada, silenciada pela narrativa oficial e que continua causando medo. É engraçado como o fantasma de Marighella causa, ainda hoje, talvez mais medo e terror nessa galera, do que na época em que ele estava vivo".
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Após a estreia de Marighella, Moura fará trabalhos com dois dos principais diretores brasileiros: Karim Aïounz e Kléber Mendonça e planeja passar um tempo no Brasil. Nesse período, o país viverá um de seus pleitos eleitorais mais complexos dos últimos anos. Para o diretor, esse é um momento de reconstrução.
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“A gente tem que voltar alguns passos e construir. Se a eleição fosse hoje, eu votaria em Lula. Embora lá atrás, quando na época dos governos do PT, eu pensasse que o Brasil precisava dar ainda um passo mais adiante do que o PT representava. A minha opção é pelas políticas de inclusão social e eu acho que Lula também é um cara que aprendeu e se afetou muito por tudo isso que a gente está falando. É nossa responsabilidade também levar um possível governo Lula para um lado mais progressista”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Teu sonho era que o filme estreasse no Brasil. Já havia uma caminhada por festivais internacionais, aquela apoteose em Berlim, mas de fato é aqui onde o filme vai travar sua maior batalha né?
Wagner Moura: É, exatamente. É um filme que estreou em 2019, no Festival de Berlim, foi uma história realmente poderosa, aplaudido de pé por quase 10 minutos e foi muito importante para a gente aquilo, porque éramos mais de 25 pessoas do elenco, o que demonstrava o comprometimento que todos tinham com o filme, foi muito bonito.
E depois de Berlim, também passamos por diversos festivais no mundo, sempre com a mesma receptividade. Seu Jorge ganhou prêmio na Itália, na Índia. O filme foi escolha do New York Times como um dos filmes da temporada. A passagem fora do Brasil de Marighella foi consagradora, mas aqui nunca fez sentido total para a gente, até que o filme pudesse estrear no Brasil.
Tentamos estrear em 2019 e fomos interditados pelo governo federal, que continua tentando interditar o filme até agora, até hoje. É um filme que, desde o seu financiamento, desde o início da sua caminhada, sempre sofreu e segue sofrendo ataques, violência. Essa gente do governo, membros do governo, tem ido à rede social para mobilizar sua militância contra o filme, indo no IMDB e dando nota baixa para o filme sem nunca ter visto.
Toda essa violência, por outro lado, sobretudo dado o momento pelo qual passa o país hoje, nas nossas pré-estréias - começamos agora em Salvador, depois Fortaleza, Rio e São Paulo - a presença das pessoas, abraçando o filme, os movimentos sociais indo em peso às pré-estreias, para dizer que esse filme significa algo para gente, que a luta de Marighella é a nossa luta, que entenderam o calvário pelo qual a gente passou e que querem ver a história de Marighella contada. Isso tudo é muito superior a qualquer tipo de violência. Eu estou muito feliz pela maneira com que as pessoas têm abraçado o filme.
Na primeira conversa que a gente teve em 2019, você falou que estava pronto para a porrada. Na última semana, o secretário de Cultura, Mário Frias, foi às redes sociais depois que você criticou o presidente Jair Bolsonaro e disse: “Achou que ia pegar comigo verba pública para esse lixo panfletário? Pede para sair, moleque!” Essa mesma Secretaria, que agora se pronuncia dessa maneira, censurou diversos espetáculos nos últimos anos, por serem contrários ao pensamento retrógrado do governo federal. É esse o tipo de movimento do governo federal a que você se refere?
É isso. O cara que é responsável pela Secretaria de Cultura no Brasil diz imbecilidades como essa: “Não vai pegar dinheiro comigo”. É muito ridículo, é muito triste. Eu fiquei pensando que esses ataques, esse tipo de postura, de declaração por parte do governo federal, elas dizem muito mais sobre o estado das coisas no Brasil do que sobre o filme propriamente dito.
Eu fiz um filme sobre Marighella, você não é obrigado a gostar dele. É um filme sobre um homem pelo qual eu tenho uma admiração enorme, um personagem da história do Brasil que teve a sua história apagada, silenciada pela narrativa oficial e que continua causando medo. É engraçado como o fantasma de Marighella causa, ainda hoje, talvez mais medo e terror nessa galera, do que na época em que ele estava vivo.
Essa exibição lá no assentamento do MST vai ser gigante, vai ser bonito, vai ser um ato simbólico, político de muita força.
Isso para mim é muito significativo do momento pelo qual o Brasil passa. Isso diz muito mais sobre quem são eles e que tipo de pessoas são essas, do que sobre o filme que eu fiz. Marighella era um homem do seu tempo e que continua inspirando, como eu disse, todos aqueles que acreditam na justiça social, um homem que sempre esteve ao lado dos mais pobres, dos mais fracos, dos oprimidos, dos tra balhadores, um lutador pelos direitos civis, um democrata. Apesar de tudo que dizem, Marighella foi um democrata, que entregou a sua vida na luta pela democracia no Brasil.
Acho que tem muito a ver com isso, de você fazer um filme para agora, a tua escolha de levar o filme para um assentamento do MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), na Bahia nesta semana e também para uma ocupação do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) em São Paulo.
É isso, eu quero aproximar o filme das pessoas pelas quais Marighella lutou sempre. Eu quis fazer um filme popular, a ideia inicial do filme era devolver ao imaginário popular a figura desse homem que teve seu nome amaldiçoado, como diz Jorge Amado na lápide de Marighella: “Retiro da maldição e do silêncio, o seu nome de baiano”.
A gente sabe que nem todo mundo consegue ir à uma sala de cinema, sobretudo hoje em dia com a pandemia, com os preços, nesse Brasil com 19 milhões de pessoas passando fome, então o que eu puder fazer para aproximar o filme das pessoas pelas quais Marighella lutou, as pessoas veem na luta de Marighella a sua luta no Brasil de hoje, o que eu puder fazer, eu vou fazer.
E não é só o MST e o MTST, todos os movimentos sociais estão chegando em peso, apoiando o filme. O Levante da Juventude, a Coalizão Negra por Direitos está em todas as pré-estreias do filme. Essa exibição lá no assentamento do MST vai ser gigante, vai ser bonito, vai ser um ato simbólico, político de muita força. Eu não tenho dúvida de que o filme, nesse momento, tem um significado simbólico muito grande e isso me anima muito.
Marighella é um thriller de ação e para além do debate político que obviamente já tem travado e vai travar ainda mais depois de sua estreia, tem essa questão de ser um filme feito para o cinema mesmo, grandioso. Isso vem muito de uma influência dos teus trabalhos no cinema de maior repercussão que têm bastante ação, no caso o Tropa de Elite, a série Narcos. Isso influenciou bastante na tua direção?
Sim, eu sempre quis fazer um filme popular. Eu acho que o cinema de ação é um gênero que tem essa capacidade de comunicação com o público muito grande, mas eu não faria um filme de ação só por isso, não. A escolha pelo gênero ação tem a ver também com a natureza das ações que a ALN (Aliança Libertadora Nacional) fazia nos anos 1960 e 1970, é uma escolha orgânica, conectada com esse período específico da história do Brasil.
Eu entendi, e aí sim a minha relação com o [José] Padilha e com os trabalhos que eu fiz com ele, que um filme político pode ser popular, ele deve ser popular. Não há contradição entre você fazer um filme de ação e falar de um Brasil, de uma história que tem ligação profunda com o que está acontecendo agora, sem abrir mão da linguagem, do arrojo cinematográfico, da complexidade dos personagens.
O filme nasce da minha admiração por Marighella, mas Marighella é um personagem complexo e essa complexidade está lá no filme. Marighella é colocado em xeque o tempo inteiro no filme.
Os teus próximos trabalhos serão com o Karim Aïounz e o Kleber Mendonça, na minha opinião, talvez os dois principais diretores brasileiros hoje.
Na minha opinião também, são dois dos maiores diretores no mundo, eu acho.
E agora desse outro lado do balcão, como é que você vê o cinema nacional? Apesar das censuras, das dificuldades, da falta de financiamento, tanto o Karim quanto o Kléber foram premiados em festivais internacionais dos mais importantes. A gente vive um momento muito especial, soma-se a isso o teu filme também.
Um pouco antes do ataque frontal à cultura organizado pelo governo Bolsonaro, o cinema brasileiro estava em uma evidência muito forte fora do Brasil, levando a nossa cultura e a nossa produção para fora. O Kléber, com Bacurau, ganhou o prêmio do júri em Cannes e o Karim, no mesmo ano, ganhou o prêmio do Certain Regard, o filme da Petra Costa tinha sido indicado ao Oscar. Hoje, o nosso cinema, o dito cinema independente brasileiro, foi destruído, acabou. Eles destruíram a Ancine [Agência Nacional de Cinema] e acabaram com toda e qualquer possibilidade desses filmes existirem.
O audiovisual brasileiro hoje sobrevive graças à presença dos streamings no Brasil, mas é uma relação diferente, porque nem todo cineasta vai ter a liberdade de poder produzir, falar o que quer. O Kléber e o Karim são dois diretores que têm uma estatura grande para poder se colocar, mesmo em uma empresa de streaming, “eu vou fazer meu filme e vai ser assim”.
Mas a maioria dos diretores iniciantes não, vão ter que obedecer a uma necessidade de mercado dessas empresas. Antes nós fazíamos os filmes que queríamos, porque contávamos com Agência Nacional de Cinema, com as redes de incentivo à cultura.
Eu acho que disse isso naquela nossa entrevista, que esperar que o governo Bolsonaro entenda a importância da cultura para o desenvolvimento do país é pedir demais desse governo, formado por pessoas medíocres, ignorantes e sem nenhum entendimento do que significa a cultura para um país.
Agora, o que me espanta é que eles, que se dizem neoliberais e tudo mais, não entendam a importância de tudo o que o nosso setor gera em termos de emprego e renda. Quando você faz um ataque aos artistas, com as mentiras, com as falácias e tentando destruir a nossa atividade, você não atinge somente os artistas, você atinge todo um setor, o cara que dirige o caminhão, a pessoa que prepara a comida, é todo um setor que gera emprego, gera renda.
Proporcionalmente geramos mais emprego e mais renda, por exemplo, que o setor automobilístico, que recebe incentivos fiscais muito maiores do que o setor cultural. Então, isso é um terreno de terra arrasada mesmo, mas que será reconstruído, porque nós sempre estaremos aqui fazendo, com todas as dificuldades, a gente vai estar sempre fazendo arte, produzindo cultura.
Eu vou citar uma frase que você disse naquele papo, que eu achei muito interessante: “Triste do país que faz dos artistas inimigos do povo”. Mesmo que a gente consiga retomar a democracia em 2022, você acha que isso ainda vai ser uma realidade daqui em diante? Uma sociedade polarizada, que vai confrontar artistas, democratas, progressistas, com lixo retrógrado? A gente tem visto que, nos Estados Unidos, o trumpismo não deixou de existir.
É, o trumpismo não deixou de existir e talvez o bolsonarismo siga aí, mas eu acho que é muito claro hoje, para a maioria da população brasileira, os que votaram em Bolsonaro na onda antipetista, antiesquerda, está muito claro hoje no Brasil a tragédia que é esse governo. Não tenho dúvida que, nas urnas, no processo democrático, o Bolsonaro vai ser derrotado.
Seja Lula o próximo presidente, seja a chamada terceira via, quem quer que seja o próximo presidente do Brasil, obrigatoriamente se distanciará dessa herança, desse contexto trágico que a gente vive hoje. Foi assim com o governo [Joe] Biden, que hoje é um governo mais progressista do que o governo [Barack] Obama, porque o que veio antes era tão terrível e tão pesado e tão retrógrado, que eles tiveram que se distanciar.
O Brasil é muito mais que isso, o progressismo e a vocação que nós temos de ser um país diverso, belo e inclusivo, isso também está dentro de nós e acho que isso vai se refletir, sem nenhuma dúvida, de 2022 para frente.
E as forças progressistas também, e a democracia é isso. Elas empurram aquele governo para um lugar de progressismo, talvez até inesperado por eles próprios, como uma forma de distanciar-se desse momento trágico. Foi assim no pós Ditadura. A nossa Constituição de 1988 é uma constituição progressista, que norteou os governos do pós-ditadura, Fernando Henrique Cardoso, com todas as contradições e diferenças, o governo Lula, o governo Dilma.
Eu costumo dizer que o governo Bolsonaro ele é trágico, mas ele é, com toda a sua tragédia, pedagógico, porque ele mostra pra gente o Brasil que ficou camuflado desde a retomada da democracia, porque a gente quis olhar para frente no Brasil, esse país da Lei de Anistia, o país do camuflamento da sua história retrógrada, racista, golpista e autoritária.
Bolsonaro emerge, como eu disse, do esgoto dessa história como um lembrete de que o país também é formado por essas forças. Mas eu acho que agora nós já nos defrontamos com isso, vimos, olhamos para isso. Eu acho que o Brasil é muito mais que isso, o progressismo e a vocação que nós temos de ser um país diverso, belo e inclusivo, isso também está dentro de nós e acho que isso vai se refletir, sem nenhuma dúvida, de 2022 para frente.
Se não houver um arroubo golpista desses aí, que a gente sempre fica temeroso, com a população sendo armada loucamente pelo governo, esse cara dizendo que só sai do governo morto ou preso - espero que preso. Se não acontecer uma tragédia, uma coisa maluca dessa, um governo cheio de militar e tal, pela via democrática, não acredito que nós brasileiros vamos repetir o erro de 2018.
No 7 de Setembro pairou no ar essa tentativa de golpe de Estado. Lá atrás você disse que não entraria na luta armada se estivesse em 1964, como fez a ALN de Marighella. O Wagner Moura de hoje entraria na luta armada?
Não sei cara, é uma pergunta difícil mesmo, porque ela exige uma complexidade muito grande na resposta. A gente tem que pensar o seguinte: os anos 1960 e 1970 eram muito diferentes, apesar da casualidade das semelhanças entre o autoritarismo e o saudosismo que Bolsonaro tem daquela época e tudo mais, o mundo era muito diferente e a revolução, a luta armada, elas fazem parte de um contexto mundial.
Marighella, a ALN, o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e todos os grupos armados da luta armada no Brasil, não era uma gente louca, voluntarista, que resolveu pegar em armas, elas estavam conectadas com o contexto mundial. A revolução e a ideia da revolução estavam presentes na cultura do mundo naquela época, refletida na cultura do mundo.
O Marighella era um cara que tinha relações com Jean Paul Sartre, [Jean Luc] Godard mandava dinheiro para Marighella. Ele assistia a Batalha de Argel do Pontecorvo o tempo todo, fora que em 1959 a revolução cubana triunfou, o Vietnã, a Argélia se libertou da França.
E Marighella foi à China e à Cuba também.
Foi, exatamente. Ele foi na Olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade) lá em Cuba e aquilo tudo foi muito importante para o contexto do Brasil, para aqueles que pensavam em como combater a ditadura naquela época. Para muitos, naquela época, a luta armada era uma opção muito viável e conectada com o mundo.
Hoje em dia, não sei se isso faz muito sentido no mundo, no Brasil de hoje, espero que a gente não chegue a um ponto em que isso faça sentido. É assim, Marighella era um homem do seu tempo, quem é anacrônico é Bolsonaro, é o grupo que está no poder hoje, que exorta seus seguidores a irem às ruas pedir a volta da ditadura, o fim do Supremo [Tribunal Federal], armando os seus seguidores.
Eu acho que sim, tentando responder a sua pergunta, eu acho que eu me engajaria certamente nos anos 1960 e 1970 na resistência contra a ditadura militar. E o meu filme diz também uma coisa que eu acho que é importante, havia muita gente nos grupos de apoio à resistência contra a ditadura que não pegava em armas.
A própria cena com o jornalista, que se sacrifica para para poder divulgar o manifesto. A forma como Clara conversa com Marighella sobre a ideia da luta armada. A resistência à ditadura militar teve diversas vertentes diferentes. O que eu não acho justo é que hoje, sob a luz da história, a gente trate a luta armada de maneira superficial. Dizendo que a luta armada recrudesceu a ditadura.
A luta armada também era feita de pessoas que viviam um momento em que estavam cerceados completamente de qualquer canal de comunicação. E dentro de um contexto mundial, entendiam que a luta armada era uma opção viável.
Você também disse lá em 2019 que o racismo não era uma pauta da esquerda na ditadura e que também não era suficientemente debatida agora. Marighella era negro, você reafirma isso com a escolha pelo Seu Jorge para fazer o papel e tem carregado contigo a Coalizão Negra por Direitos que, como você falou, está em peso em todas as pré-estréias. O que você acha que mudou de lá para cá?
Quando eu disse que a luta contra o racismo naquela época não tinha a força que tem hoje por parte da esquerda, é verdade. O que não quer dizer que não houvesse uma luta. Marighella sempre foi um defensor...é um cara que nasceu na Baixa do Sapateiro, uma região pobre, habitada sobretudo por pessoas de cor negra em Salvador e essa luta, ele sempre carregou, a vida inteira. Marighella era filho de uma mulher que nasceu em 1888, justamente no ano em que o Brasil, o último país do mundo ocidental, aboliu a escravidão.
Essa mulher, filha de escravos sudaneses, dos malês, do yourubá, Imalê, que eram muçulmanos, que eram negros da região de onde vieram. Primeiro: eram alfabetizados, tinham noção de matemática e eram adestrados nas lutas de revolta nos seus países. Então, quando vieram para Salvador, essa população ficou sobretudo na Bahia, foi a galera que deu mais trabalho aos senhores de engenho aqui, sendo a Revolta dos Malês a mais poderosa e significativa de todas.
Desconectar a luta de Marighella dessa sua herança ancestral seria um erro histórico, brutal. Na época em que a gente falou disso, eu tinha escolhido [Mano] Brown, que tem uma cor de pele mais parecida com a de Marighella, que tem uma representação simbólica muito forte hoje em dia como um poeta também. Brown é marighellista mesmo antes de eu conhecê-lo.
Mas quando eu optei por Seu Jorge, na época e quando eu falei com vocês, talvez não tivesse suficientemente claro na minha cabeça, a importância que isso tem. Eu acertei sem saber, porque para mim, na época, eu só queria que fosse um cara preto, eu não me importava se a pele era mais escura ou menos escura, não podia ser mais clara.
E hoje em dia, eu acho que o fato de Seu Jorge ter a cor de pele mais escura do que a de Marighella e do que a de Mano Brown, o fato de ter empretecido Marighella foi um acerto muito grande, porque eu fiz o caminho inverso da história do audiovisual brasileiro, que embranquece os seus personagens.
Então, eu estou reafirmando a negritude de Marighella e dizendo, por exemplo, para a Coalizão Negra por Direitos e para os movimentos negros em geral, que esse foi um lutador importante para a justiça social e para a democracia, no direito dos mais pobres, das desigualdades civis e que esse homem era negro. Portanto, que um menino negro possa olhar para esse cara hoje e dizer: “Esse homem era negro, eu tenho orgulho dele”, isso para mim é muito importante, faz muito sentido.
Para encerrar, você já havia comentado que, se as eleições fossem hoje, teu voto era em Lula. Como tem visto o cenário eleitoral de 2022. Você deve estar pelo Brasil, trabalhando...
Acho que a luta hoje é a retomada da democracia plena, quer dizer, democracia plena nós nunca tivemos, mas a retomada de uma base democrática que já tivemos antes e que dali em diante deveria progredir, ir adiante, nós fomos para trás. É um terreno de terra arrasada, o governo Bolsonaro não é um governo que construiu nada, é um governo de destruição.
Ele destruiu basicamente tudo o que havia de bom, todas as conquistas que a gente chegou na nossa jovem democracia foram destruídas.
Então eu acho que agora é um cenário de construção. A gente tem que voltar alguns passos e construir. Se a eleição fosse hoje, eu votaria em Lula. Embora lá atrás, quando na época dos governos do PT, eu pensasse que o Brasil precisava dar ainda um passo mais adiante do que o PT representava.
Mas eu acho que agora é hora de a gente reconstruir, eu acho que, nesse momento, a minha opção é pelas políticas de inclusão social e eu acho que Lula também é um cara que aprendeu e se afetou muito por tudo isso que a gente está falando. O próximo governo Lula, mesmo ele sendo esse político hábil e conciliatório e tudo, nós, é nossa responsabilidade também levar um possível governo Lula para um lado mais progressista, forçá-lo a caminhar mais para a esquerda do que talvez os seus outros governos.
Edição: Leandro Melito