Atualmente mobilizado contra a reforma administrativa do governo Bolsonaro, que tramita na Câmara dos Deputados como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32, o funcionalismo público enfrenta hoje um arsenal de medidas da gestão que afetam a vida da tropa do Estado e põem em xeque a qualidade e a eficiência da administração em todos os níveis federativos do país.
Neste 28 de outubro, data em que se comemora o Dia do Servidor Público, o Brasil de Fato conversou com o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Servir Brasil), deputado federal Israel Batista (PV-DF), sobre alguns dos temas que povoam os principais pesadelos do funcionalismo neste momento.
Na condição de integrante do campo da oposição na Câmara, o parlamentar destacou o risco próximo de votação da PEC 32, que ele entende que pode ser submetida à aprovação do plenário até o final do ano, antes do recesso parlamentar.
“Estamos naquele momento crucial, em que o governo, percebendo que não tem os 308 votos, segura a votação até que consiga negociar esses 308. Então, estamos sob severa ameaça”, alerta o deputado do PV, ao rememorar as mais recentes articulações da gestão.
Nos últimos dias, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que a medida pode ser colocada em votação nas próximas semanas. A equipe econômica também voltou a mexer seus pauzinhos e o ministro, Paulo Guedes, chegou a dizer no domingo (24) que a PEC 32 pode ajudar a compensar uma parcela dos R$ 30 bilhões que a gestão tem mobilizado para alinhavar os valores do Auxílio Brasil, o programa que em breve deverá substituir o Bolsa Família.
A gestão sustenta que a reforma irá enxugar os gastos da máquina pública, insiste no arrocho fiscal – simbolizado pelo chamado “Teto de Gastos” –, que afeta os servidores e a população, e enfrenta duras divergências com a oposição. Esta última, ao contrário, resiste à agenda neoliberal de Bolsonaro e Guedes e ecoa demandas que partem do sindicalismo e de segmentos populares.
Foi nesse contexto que o deputado Israel Batista conversou com o Brasil de Fato sobre os desafios da oposição e do Brasil neste momento no que se refere ao serviço público. Confira a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – O governo reacendeu recentemente a articulação política em torno da PEC 32. Qual grau de ameaça a frente parlamentar entende que a pauta representa neste momento, considerando que as energias da gestão Bolsonaro estão divididas por estarem voltadas também para outras pautas do Legislativo? Vê uma chance real de votação da reforma ainda este ano, antes do recesso parlamentar?
Israel Batista - Eu vejo uma chance real de votação. Acho que os servidores não podem baixar a guarda neste momento. O governo está decidido a aprovar algumas reformas e a dedicar parte do orçamento público para negociações com os parlamentares. E, quando eu digo isso, digo particularmente sobre emendas não impositivas.
O governo está focado em aprovar especialmente a PEC 23 e, nessas negociações sobre essa PEC, ele pode retomar as negociações sobre a PEC 32 [PEC dos Precatórios]. Então, nós fizemos uma estratégia correta de adiar a votação da PEC 32, de forçar um atraso. Tivemos sucesso nessa estratégia, jogamos ela para este final de terceiro ano do governo – o governo quis aprovar isso muito antes, mas nós impedimos.
E nós conseguimos fazer com que o debate público se tornasse mais democrático e por isso grande parte da sociedade não se convenceu da narrativa do governo de demonizar o servidor público. Então, fomos para o debate público e disputamos uma parte da opinião pública. Isso foi essencial.
E agora estamos naquele momento crucial, em que o governo, percebendo que não tem os 308 votos, segura a votação até que ele consiga negociar esses 308 votos. Então, estamos, sim, sob severa ameaça.
Embora a PEC 32 tenha esfriado nas últimas semanas, no último fim de semana ela esquentou de novo, com essa reação do Arthur Lira e do ministro Paulo Guedes requentando teses que já estavam vencidas, como, por exemplo, a de que o servidor público é um privilegiado.
Do ponto de vista da argumentação, o governo tem dito que a PEC faria o Estado economizar cerca de R$ 300 bilhões dos cofres públicos. Vocês da oposição acusaram a gestão de falta de embasamento para explicar esse montante. Que outras fragilidades o senhor destacaria como mais importantes no jogo político em torno da proposta?
O governo se comporta de maneira pouco transparente sobre a PEC 32. Isso, para mim, é uma grande fragilidade. Primeiro, porque ela não entrega o que promete, ou seja, não ataca privilégios, não ataca desigualdades entre servidores públicos municipais, estaduais e federais, não ataca a falta de transparência no processo de tomada de decisões na administração pública e não trata da qualidade do serviço público prestado à população.
E, na propaganda do governo, ele fala somente essas coisas. Ele fala de fim de privilégios, mas a PEC não trata dos privilegiados. Ele fala de melhoria na qualidade dos serviços públicos, mas a PEC fragiliza a relação entre os servidores e o Estado, ao possibilitar uma diminuição dos concursos públicos e permitir, por exemplo, a terceirização, os processos seletivos simplificados para contratações temporárias.
E a gente sabe que onde tem servidores concursados você tem uma melhor prestação do serviço público. É justamente naqueles municípios onde não há estabilidade que prefeitos e vereadores indicam [funcionários] livremente e você tem o pior serviço público.
Então, a gente percebe uma imensa fragilidade entre o texto proposto e a promessa feita pelo governo. Falta muita transparência. Outra fragilidade importante é que o governo não apresentou um diagnóstico sobre o serviço público brasileiro e, portanto, ele nem sabe o que precisa corrigir.
Se você perguntar para o governo o que deve ser feito nos hospitais públicos para que os governos tenham melhor atendimento, você vai ter esse diagnóstico. Eles não sabem o que fazer, não sabem onde estão os gargalos.
Então, é uma proposta mambembe, de gente que não tem capacidade técnica para fazer uma alteração tão profunda nas regras da administração pública brasileira. Falta capacidade técnica pro governo. O texto é ruim demais, é de baixa qualidade.
No atual contexto de desidratação da estrutura da máquina estatal e asfixia orçamentária, fala-se muito sobre os riscos de maior escassez na oferta de concursos públicos no futuro próximo do país, que hoje vive sob um rígido ajuste fiscal, o Teto dos Gastos, motivo de travamento de uma série de políticas públicas. O senhor vê alguma saída para esse cenário que não passe pela revogação do teto?
Eu não vejo saída e acredito que o teto seja um empecilho ao desenvolvimento do país neste momento. O teto é uma medida econômica que aprofunda um ciclo de depressão e desaquecimento econômico do país e a gente precisava revogar.
Agora, existem outras coisas que podem ser feitas e eu diria que o mais fácil de se fazer agora, neste momento, é evitar declarações polêmicas, evitar confrontos entre os Poderes e agir com mais equilíbrio porque o Brasil vive, acima de tudo, uma profunda crise de credibilidade. Ela se dá a partir do momento em que você tem na cadeira presidencial alguém que não passa confiança, que está sempre metido nas piores confusões, falando os piores absurdos e dando para o mundo dos negócios a pior sinalização.
As perseguições a servidores públicos estão entre as questões que se avantajaram durante a gestão Bolsonaro. É o caso dos episódios envolvendo professores de universidades que manifestam ideias de caráter progressista e garantista – muitos foram censurados – e também de funcionários públicos da área de proteção ambiental. Como enfrentar isso num cenário em que o governo de plantão chega a ponto de colocar interventores nas universidades para administrar as instituições e incentiva estigmas e ataques ao funcionalismo?
É importante frisar que todos esses ataques ao funcionalismo são graves, mas eles têm um limite, o limite de que o servidor, sendo estável, pode resistir com maior eficiência a esses ataques. E a gente percebe que a reação dos servidores públicos tem colocado o governo nas cordas.
O governo está profundamente enfraquecido, e enfraquecido em diversos episódios graças à atuação de servidores de carreira. Acho que a resistência já está acontecendo porque nós não permitimos o enfraquecimento da estabilidade no serviço público e por isso a própria massa do funcionalismo reagiu a esses ataques. Então, quando ele afronta os servidores da área ambiental, por exemplo, você tem servidores altivos o suficiente para denunciarem.
A resistência a essa tentativa de interferência nas áreas técnicas deve prioritariamente ser feita através da recusa veemente à PEC 32. Esse é o principal ponto porque, apesar das investidas do governo contra diversas áreas – Polícia Federal (PF), órgãos de fiscalização ambiental, as universidades –, aquele servidores que afrontaram o poder constituído continuam ocupando seus cargos públicos, embora muitas vezes tenham perdido as funções de confiança.
Então, você tem hoje os instrumentos constitucionais para que a burocracia do Estado resista a essa interferência política indevida. A PF tem resistido, os delegados têm respondido ao governo, inclusive com o delegado que indiciou um ministro de Estado, que é o ministro do Meio Ambiente.
Você tem também os cientistas do Inpe [Instituo Nacional de Pesquisas Espaciais] apresentando seus relatórios mesmo a contragosto do governo, você tem os diplomatas brasileiros numa atividade extremamente profissional no exterior, tentando apagar os incêndios causados pelas declarações irresponsáveis da família presidencial.
Então, a maior resistência que nós podemos impor ao governo é justamente enterrar a PEC 32 e garantir que os servidores prestem serviço ao Estado brasileiro, e não ao governo de plantão.
Quais as armas que o senhor entende que a oposição tem neste momento para tentar barrar a PEC 32?
As armas que temos são poucas, mas, se bem utilizadas, são eficientes. A primeira arma que nós temos é a união. Não podemos permitir que o governo divida os servidores públicos, como vem tentando fazer desde o início.
Primeiro, o governo tentou separar os da segurança pública dos demais servidores, mas nós, da Servir Brasil, trouxemos para o nosso conselho curador as entidades representativas do setor de segurança.
Também apertamos a mão do presidente da Frente Parlamentar Mista de Segurança Pública – a famosa “bancada da bala” – e fechamos acordo com ele, dizendo “não abandone os servidores das outras carreiras porque eles precisam estar unidos neste momento em que o governo tenta fragilizá-los provocando uma divisão no serviço público”.
Ao mesmo tempo, essa união foi importante quando nós evitamos uma ruptura entre os servidores que poderiam ser considerados como carreiras típicas de Estado e os demais servidores. Ou seja, ninguém solta a mão de ninguém. É assim que nós vamos resistir à PEC 32.
Agora, existem também outras armas, como a disputa da opinião pública. Quando a reforma começou a ser discutida, o governo tentou vender a narrativa de que os servidores eram responsáveis pela crise fiscal, de que eles seriam os vilões do Brasil, e nós conseguimos ir para disputa, conseguimos conversar com os jornalistas e conseguimos mostrar o outro lado dessa história.
Conseguimos mostrar que a média salarial dos servidores brasileiros é de quatro salários mínimos, que existe muita disparidade entre os servidores brasileiros, que mesmo aqueles que têm salários relativamente altos – apenas 3% dos servidores brasileiros recebem mais do que R$ 20 mil por mês, ou seja, é uma exceção que o governo usa como regra para escandalizar a opinião pública – têm um grau de formação elevado.
Então, a segunda arma que temos é a capacidade de disputar a narrativa e apresentar para opinião pública a nossa versão dos fatos, que é a que realmente corresponde à verdade. Nós conseguimos mudar uma parte da percepção da sociedade brasileira sobre o serviço público e conseguimos ganhar o apoio não apenas dos servidores, mas também dos usuários dos serviços públicos.
Edição: Vivian Virissimo