Há seis meses, a cozinha distribui 800 refeições por dia e ajuda cerca de 130 famílias contra a fome
Por Paula Andreas*
Uma triste realidade agravada com a pandemia do novo coronavírus, além da crise de saúde pública, é o aumento da fome de pessoas em situação de vulnerabilidade social, conforme aponta o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
Esse quadro é piorado devido ao descaso de muitos gestores públicos, que, em vez de manter e ampliar programas sociais, acabam promovendo o desmonte de políticas públicas que poderiam enfrentar a situação de fome de brasileiras e brasileiros. Esse é o caso da cidade de Campina Grande, na Paraíba, que teve suas cozinhas comunitárias fechadas pela gestão pública há oito anos e onde, mesmo diante do contexto de desemprego e fome, a atual administração municipal se recusa a reabri-las.
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Dando exemplo de como se faz a gestão de uma política pública, um coletivo formado por organizações da sociedade civil, com o apoio da própria comunidade, ocupou de forma pacífica e reabriu, em 19 de abril de 2021, a cozinha comunitária desativada no Bairro Jeremias, periferia da cidade de Campina Grande / PB. Desde então, a cozinha vem produzindo e servindo mais de 800 refeições diárias, distribuídas gratuitamente às moradoras e aos moradores do bairro.
Denominado de Comitê Sindical e Popular Contra a Fome**, o coletivo reúne diversos movimentos sociais do campo e da cidade, entidades sindicais e entidades das juventudes. Paulo Romário, um dos integrantes do Comitê, conta que o município de Campina Grande possuía dois restaurantes populares e nove cozinhas comunitárias distribuídas nos bairros mais carentes da cidade.
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Esses estabelecimentos faziam parte de um programa municipal, que atendia a população servindo pelo menos uma refeição diária ao custo de um real. No entanto, as cozinhas foram fechadas em 2013 e, desde então, estavam abandonadas. Diante da pandemia, da elevação do desemprego e da volta da fome em grande escala, a reabertura das cozinhas comunitárias foi apontada como prioridade pelo Comitê, que tentou pautar e sensibilizar a gestão municipal.
No dia 27 de abril de 2021, um protesto foi realizado em frente ao gabinete do atual prefeito de Campina Grande, Bruno Cunha Lima (PSD), pela abertura das cozinhas comunitárias. Na ocasião, um grupo formado por cerca de 20 cozinheiras da comunidade do Jeremias foi recebido pelo chefe de gabinete do prefeito, que alegou alto custo para reabertura das cozinhas. Como os estabelecimentos continuaram fechados, o grupo protocolou um pedido de audiência com o prefeito, em caráter de urgência, para tratar da reabertura de todas as unidades locais; mas essa reunião nunca aconteceu.
Ocupação da Cozinha do Jeremias: organização, coletividade e solidariedade
A cozinha do Bairro Jeremias foi reestruturada pelo Comitê, com a troca de torneiras e lâmpadas que não funcionavam e com a aquisição de panelas, botijões de gás, talheres, pratos e alimentos. Agora, denominada de Cozinha Solidária, são oferecidas refeições a cerca de 130 famílias, uma vez por dia, de segunda a sexta-feira.
Grande parte dos alimentos é doada pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e o custeio para a manutenção do Comitê tem sido feito pelo conjunto das entidades que o compõem e pela comunidade, que se reveza para contribuir e manter as atividades. “No início, eram 21 pessoas que se revezavam na produção das refeições, limpeza do local e organização da distribuição que acontece à noite, a partir das 19h. A maior parte das pessoas que ajuda na cozinha é da própria comunidade, que se juntou ao Comitê para apoiar o movimento”, explica Paulo Romário.
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No entanto, a Cozinha do Jeremias não se resume apenas à entrega das refeições. Iara Rodrigues Silva, coordenadora das/os voluntárias/os da Cozinha, destaca a importância da integração da comunidade e, principalmente, das mulheres, que são maioria tanto nas atividades de produção das refeições como na busca pelo alimento para suas famílias.
Dificuldades para manutenção sem o envolvimento do poder público
Após seis meses de ocupação, a cozinha do Bairro Jeremias continua firme distribuindo refeições às famílias carentes. Mas a coordenadora faz um alerta importante.
“Após cinco meses, a sustentabilidade econômica da cozinha está ameaçada, as doações foram diminuindo e as mulheres da cozinha se mobilizam para pedir doações e buscar alimentos”, conta Iara Rodrigues. Com a baixa na oferta de alimentos e das doações, e sem condições financeiras de suprir essa lacuna, a oferta das refeições para a comunidade vai passar a ser feita somente nas segundas, quartas e sextas-feiras.
“O movimento vem doando toneladas de alimentos, mas eles não sabem até quando poderão manter a Cozinha do Bairro Jeremias. As doações diminuíram e, sem o interesse do poder público em ajudar, enfrentamos essas dificuldades, mas continuaremos na luta para fazer a nossa parte”, destaca Iara Rodrigues.
A coordenadora ainda ressalta que, em Campina Grande / PB, essa realidade poderia ser amenizada se a gestão municipal assumisse sua responsabilidade de ajudar as pessoas em condições de vulnerabilidade social. “Mesmo com o esforço do Comitê em chamar o poder público para dialogar, esse não se manifesta e as cozinhas comunitárias de Campina Grande continuam fechadas. A gente conta com o apoio de apenas dois vereadores, que são sensíveis à causa. A Cozinha do Bairro Jeremias é nosso grito por segurança alimentar, valorização da agricultura familiar e da agroecologia”, pontua Iara Rodrigues.
Para elaborar essa matéria, fizemos contato com o Gabinete do Prefeito Bruno Cunha Lima e também com a Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Campina Grande / PB para saber o motivo da não reabertura das cozinhas ou se há algum interesse do poder público em reabri-las. Mas, até o fechamento do texto, não tivemos nenhum retorno.
*Paula Andreas é comunicadora popular da Articulação Nacional de Agroecologia.
**O Comitê Sindical e Popular Contra a Fome é composto por: Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior / Sindicato Nacional (ANDES-SN), Associação Docentes da Universidade Federal de Campina Grande (ADUFCG), Associação Docentes da Universidade Estadual da Paraíba (ADUEPB), Sindicato dos Trabalhadores da Educação Básica, Profissional e Tecnológica da Paraíba (SINTEFPB), Sindicato dos Trabalhadores Públicos Municipais do Agreste da Borborema (SINTAB), Sindicato dos Trabalhadores em Correios e Telégrafos na Paraíba, Empreiteiras e Similares (SINTECT-PB), Central Sindical e Popular (CSP/CONLUTAS), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Atigindos por Barragens (MAB), União Nacional dos Estudantes (UNE), Diretório Central dos Estudantes (DCE/UFCG), Pastoral da Juventude Rural (PJR), Levante Popular da Juventude, Correnteza, Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), Movimento de Lutas nos Bairros (MLB), além do apoio dos mandatos dos vereadores Anderson Pila e Jô Oliveira.
***Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.
****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo