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Proteção social, feminismo e trabalho autogestionário: respostas ao desemprego e à fome

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Mulheres enfrentam maiores obstáculos para contribuir com o sistema previdenciário de forma permanente - Elaine Campos / SOF
É justamente nesse momento que a economia solidária e feminista renova a sua atualidade

Por Maria Fernanda Marcelino*

 

Nesse momento de profunda crise social, ambiental, econômica, politica e sanitária, ficou ainda mais evidente como o trabalho de cuidados é indispensável para o bem estar da vida humana. Como resposta ao desemprego atordoante e à fome, vimos emergir ações de solidariedade organizadas por mulheres, hortas comunitárias se multiplicarem, assim como outras ações autogestionadas de solidariedade, que só foram concretizadas por iniciativas femininas que têm no horizonte o cuidado e a sustentabilidade da vida.

É justamente nesse momento que a economia solidária e feminista renova a sua atualidade. Isso porque ela parte da ampliação das noções de trabalho e trazem para o centro do debate as necessidades reais dos seres humanos e sua relação com a natureza.

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O desmonte do Estado e a vida das mulheres

Ainda em 2016, após o impeachment fraudulento sofrido por Dilma Rousseff, o país começou a vivenciar o desmonte de direitos e da proteção social assegurados pela Constituição Federal.

O golpista Michel Temer abriu caminho para que todo tipo de desregulamentação tivesse êxito. A emenda constitucional do teto de gastos, chamada pelos movimentos sociais de “PEC da morte”, limitou e congelou investimentos em saúde, educação e seguridade social por um prazo de 20 anos, sob o argumento de austeridade e corte de gastos.

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As múltiplas contribuições das mulheres

O sistema de seguridade brasileiro é ancorado em um tripé formado por saúde, assistência social e sistema previdenciário. Seus princípios são a gratuidade e a universalidade. No Sistema Único de Saúde (SUS) qualquer pessoa tem o direito ao atendimento. No Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a atenção é focalizada em parcelas da população mais vulneráveis. Ambos são sistemas não-contributivos, o que significa que não exigem contribuição direta dos beneficiários, e sim a contribuição tributária.

Na previdência, os serviços e benefícios são determinados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Diferentes dos demais, eles são organizados de forma contributiva, e garantem acesso a direitos sociais vinculados ao trabalho, como seguro desemprego, licença-maternidade e aposentadoria. O sistema opera como um atenuante das desigualdades sociais e para a redistribuição de renda.

Olhando mais detidamente para o sistema previdenciário, há muitas lacunas de cobertura para as mulheres, que enfrentam maiores obstáculos para contribuir de forma permanente. A imbricação de classe, divisão sexual e racial do trabalho impõe às mulheres que vivam do subemprego, na informalidade, sustentando a economia com o trabalho domestico e de cuidados, que não é reconhecido, nem garantido por politicas de socialização com implementação de politicas públicas sustentando a economia com uma enorme sobrecarga de trabalho domestico que não é reconhecido nem tratado como algo do conjunto da sociedade.

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A reforma da previdência aprovada em 2019 afastou ainda mais esse direito da população feminina brasileira, impondo regras inalcançáveis para trabalhadores e impensáveis para as mulheres. Sob a legislação anterior, mulheres e homens poderiam se aposentar com qualquer idade tendo cumprido a quantidade mínima de anos de contribuição. Com a reforma, as mulheres precisam ter no mínimo 62 anos necessariamente, o que penaliza justamente quem começou a trabalhar mais cedo.

As mulheres da economia solidária são parte da massa de trabalhadoras e trabalhadores inseridos - ou excluídos - da previdência pública de forma difusa, sem que haja uma política ou um marco jurídico que regulamente essa forma de trabalho e de acesso a proteção social.

 

Quem protege as trabalhadoras da economia solidária?

No texto “Proteção social e Economia Solidária no Brasil: O debate no movimento social e os processos de institucionalização”, publicado recentemente no site da SOF, Beatriz Schwenck e Vera Machado apresentam um resgate da trajetória de reflexões e propostas do movimento de economia solidária e interpelam o Estado e toda a sociedade quanto à proteção social no trabalho autogestionário.

O movimento tem se esforçado para divulgar e fortalecer a economia solidária como uma alternativa viável e justa de organização do trabalho. Como parte desse esforço, no cenário brasileiro a economia solidária tem aparecido ligada à promoção do trabalho e renda, separada de políticas de assistência social ou outras que não tenham o trabalho autogestionário, associativo e coletivo como valor orientador. Por esse motivo, a discussão sobre proteção e seguridade social na economia solidária liga-se ao sistema previdenciário. No texto, Vera e Beatriz contextualizam essa relação:

Nos documentos das plenárias e conferências nacionais, o tema da seguridade social vem sempre ligado à reivindicação da criação de um marco jurídico para a economia solidária. Esse é o caminho apontado para assegurar o reconhecimento do direito à organização coletiva do trabalho, e a garantia direitos trabalhistas para trabalhadores e trabalhadoras associados/as, que vai se construindo ao longo do tempo, à medida que a economia solidária se estrutura no Brasil.

(...) A criação do marco jurídico da economia solidária perpassa o debate sobre legislações (lei do cooperativismo, previdência) e também a consolidação dos Empreendimentos Econômicos Solidários como uma categoria jurídica que permita o acesso de seus trabalhadores e trabalhadoras associadas a direitos sociais, previdenciários e trabalhistas.

As mulheres na economia solidária

As mulheres são a maioria na economia solidária. No entanto, a permanência, dedicação e capacitação para sua produção são dificultados ou interrompidos pela sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados. Isso leva, inclusive, à invisibilização e ao não reconhecimento do trabalho, como vemos no trecho abaixo:

A invisibilidade de mulheres no campo da economia solidária já pôde ser observada em uma pesquisa realizada pela SOF - Sempreviva Organização Feminista e o CF-8 - Centro Feminista 8 de Março nos Territórios da Cidadania onde atuaram entre 2009 e 2013. Foram identificados ao longo do trabalho 972 grupos produtivos de mulheres frente a 267 identificados pelo Mapeamento da Economia Solidária realizado pelo governo federal.

A maior parte das iniciativas de produção das mulheres são individuais ou familiares, realizadas em casa, acumulando o trabalho reprodutivo e produtivo ao mesmo tempo. Ainda que a produção seja individual ou familiar, há uma atuação coletiva, permeada por cooperação e solidariedade desde os processos de obtenção de matéria prima até a comercialização.

Coletivo vs. individual

O aprofundamento do neoliberalismo no país coloca ainda mais barreiras para que possamos avançar nas propostas de proteção social e na criação de marcos jurídicos que incorporem formas de trabalho contra hegemônicas.

A lei de cooperativas em vigência no Brasil data de 1971 (Lei 5.764) e possibilita a existência das conhecidas “coopergatos” que são nada mais do que empresas capitalistas, cujas práticas nada têm de autogestão democrática, um princípio que é fundante na economia solidária.

Uma das exigências para o enquadramento nessa lei é a necessidade de, no mínimo, vinte pessoas associadas do âmbito suprafamiliar. Essa exigência está bastante distante de grupos urbanos ou rurais, cuja composição é, em geral, familiar e com números menores. O confinamento das mulheres nas tarefas domésticas complexifica ainda mais o reconhecimento de suas iniciativas de produção coletiva.

Se, por um lado, vemos as dificuldades enfrentadas para a formalização de grupos, por outro, a criação da personalidade jurídica individual, o MEI (microempreendedor individual), possibilita de forma relativamente simples a contribuição previdenciária e o acesso a benefícios.

Cabem muitas críticas a essa lógica que incentiva e consolida o que chamamos de “pejotização” da força de trabalho. Pessoas que fazem bicos e estão fora do mercado de trabalho formal passam a se colocar como microempreendedoras, por ser uma das únicas alternativas possíveis em um contexto de desemprego. Lançadas à própria sorte, precisam sobreviver de forma autônoma e individual.

Ainda que não haja uma única proposta consensual em âmbito federal, o movimento nacional de economia solidária vem à tempos apontando a necessidade de inclusão de iniciativas de economia solidária como um tipo de segurado especial. Do ponto de vista das mulheres há ainda a demanda imperativa de que o trabalho doméstico e de cuidados seja dividido com o estado e com os homens.

Projetos de lei que regulamentam e abrem caminhos para o trabalho autogestionário com proteção social ou para a aquisição de bens de empresas falidas para gestão operária seguem parados na Câmara de Deputados e nas Assembleias Legislativas do Brasil. Enquanto isso, essa outra forma de organização do trabalho segue gerando riqueza à custa de nossos direitos.

 

*Maria Fernanda Marcelino é integrante da SOF Sempreviva Organização Feminista e da Associação de Mulheres da Economia Solidária de São Paulo (Amesol) e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.

**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo