Fico com a sensação de que as pessoas foram ficando um pouco mais apáticas ou anestesiadas.
Foram dois anos de espera, mas no próximo dia 4 de novembro, finalmente o filme Marighella entrará em cartaz no Brasil. Nesse período, enquanto enfrentava burocracias com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), o primeiro longa dirigido por Wagner Moura, que narra uma parte da história do guerrilheiro baiano, que se tornou o inimigo número 1 da ditadura militar, viajou o mundo, com exibições em diversos festivais.
O filme trata dos últimos cinco anos de vida de Carlos Marighella, da saída do PCB - onde militou e se tornou deputado federal - até a criação da Aliança Libertadora Nacional e sua incursão na luta armada contra a ditadura.
Depois de sua morte, Marighella se tornou um personagem “maldito” e assim como os demais que não se renderam aos militares, foi excluído dos livros de história e taxado como terrorista. O descolamento da verdade sobre a luta popular contra a opressão é um dos pontos que devem ser tema de debate após seu lançamento.
“No processo do filme, eu fui ficando cada vez mais frustrada em como eu não aprendi, de fato, coisas do país que eu vivo. Eu estudei em uma escola particular, tive esse privilégio, e o jeito que as coisas ensinadas eram muito defasadas, eram muito mais eurocentradas, um ensino super colonial”, explica a atriz Bella Camero.
Camero vive personagem homônima no longa, uma estudante que adentra a Aliança Libertadora Nacional para se opor à ditadura. Convidada desta semana no BDF Entrevista, Camero conta como Marighella é um filme que vai para além da escolha por ingressar na luta armada, mas também sobre levar suas ideias para a prática.
“Quero muito que o maior número de pessoas assistam, porque mais do que fazer um julgamento sobre as escolhas do Marighella, a escolha da luta armada, a gente precisa conhecer essa pessoa que fez parte da história, que foi alguém que lutou de uma maneira magistral e foi para além do discurso, para além da ideia teórica. Ele levou para a prática”.
Na entrevista, a atriz também fala sobre a suposta censura da Ancine ao filme, suas escolhas artísticas e sobre a perigosa passividade com que a sociedade brasileira assiste ao desenrolar do governo Jair Bolsonaro.
“Sempre que falo da minha personagem no filme, eu digo que ela mostra muito o fato de realmente renunciar a própria vida pela luta, pela militância. Eu fico com essa sensação que as pessoas, me incluindo, às vezes foram ficando um pouco mais apáticas ou anestesiadas”.
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Finalmente o filme vai estrear, como está essa espera? O pontapé em Berlim, em 2019, com muito entusiasmo, aplausos na Berlinale...parecia que o filme ia engrenar nesse ritmo por festivais e a estreia no Brasil.
Bella Camero: A gente já estava querendo, na época das filmagens, conseguir lançar o filme antes das eleições para trazer alguma discussão, trazer a temática do filme, ver o filme aplaudido em tantos festivais internacionais, no Brasil. Foi uma espera angustiante.
Será que vai ser um filme de festival? Era um filme que a gente queria, desde o início, que fosse lançado no Brasil, para o Brasil.
Muitas coisas foram ventiladas sobre o não lançamento do filme, uma suposta censura, dificuldades com a Ancine, produtoras, enfim. O elenco estava a par de tudo isso? Vocês sentiram alguma questão envolvendo uma possível censura da Ancine?
É, não houve uma censura direta de, “o filme não vai passar, porque não queremos”. Mas acho que cada vez mais essa censura tem sido feita pelas vias burocráticas e nós, atores tentando entender o que estava acontecendo, porque eu não sei exatamente todos esses pormenores de papelada.
Exigiram documentações complicadas, que antes não eram exigidas, enrolaram para entregar aprovações o que, consequentemente, extrapola datas e prazos de entrega de outras. Então, dava uma sensação de censura mesmo, mas desse jeito sinuoso.
E você, Bella, já nasceu em um período democrático do país, apesar de obviamente nunca termos sido uma democracia plena, mas vivíamos em alguma normalidade. Como é que foi, para você, revisitar esse período tão triste da nossa história?
No processo do filme eu fui ficando cada vez mais frustrada em como eu não aprendi, de fato, coisas do país que eu vivo. Eu estudei em uma escola particular, tive esse privilégio, e o jeito que as coisas ensinadas eram muito defasadas, eram muito mais eurocentradas, um ensino super colonial.
Então, me doeu muito. Minha mãe é uma pessoa super politizada, tenho isso em casa, mas como é que a gente não tem isso mais nítido? Como é que a gente não tem essa memória muito mais viva? Como é que não se sente essa dor, de fato?
A figura do Marighella foi amaldiçoada com o tempo, com uma pecha de terrorista, quando, na verdade, a gente tem um herói na luta pela democracia. Essa é uma chance de as pessoas se reconciliarem com esse personagem tão importante da nossa história?
Sim, por isso que o filme é muito importante. Quero muito que o maior número de pessoas assista, porque mais do que fazer um julgamento sobre as escolhas do Marighella, a escolha da luta armada, a gente precisa conhecer essa pessoa que fez parte da história, que foi alguém que lutou de uma maneira magistral e foi para além do discurso, para além da ideia teórica. Ele levou para a prática.
Ele abdicou da vida dele pelo que acreditava para o coletivo. Uma figura importantíssima, que a gente só conhece como um terrorista, um radical, que é muito, muito mais que isso.
Minha impressão é que o filme também é sobre renúncia, de deixar para trás algumas coisas em prol de uma causa. Você acha que tem sido cada vez mais raro esse tipo de sentimento? É difícil para as pessoas deixarem essa zona de conforto, para combater o que quer que seja?
É, sempre que falo da minha personagem no filme, eu digo que ela mostra muito o fato de realmente renunciar a própria vida, muitas coisas, pela luta, pela militância. Eu fico com essa sensação, que eu não vou saber chegar em uma conclusão, mas as pessoas, me incluindo, às vezes foram ficando um pouco mais apáticas ou anestesiadas.
São poucas figuras como Marighella, como guerrilheiros, que largavam tudo pela militância. Mas ao mesmo tempo temos alguns exemplos também que correm tantos riscos quanto as pessoas que entraram na guerrilha.
Um exemplo que todos vão conhecer é a Marielle [Franco], que por falas e movimentos que não se comparam a largar tudo pela guerrilha, foi assassinada, possivelmente pelo Estado. Essas pessoas viram inspiração para que a gente não entre nessa apatia.
O próprio diretor do filme, Wagner Moura, já havia afirmado em 2019 na coletiva de imprensa do lançamento do filme em Berlim, que é um filme sobre a resistência ao golpe de 1964, mas também sobre a resistência dos nossos dias, aos ataques frontais do governo Bolsonaro, por exemplo, contra a comunidade LGBTQIA+, à população negra, aos indígenas. Você também acredita que o filme faz essa conexão direta com os dias atuais?
Sem dúvida. Inclusive, quando perguntam: é um filme biográfico? É um filme biográfico, mas não esmiúça historicamente tudo perfeitamente a vida do Marighella, são só os últimos anos de vida dele. Mas o que o Wagner queria colocar, e nós atores e equipe, era sobre essa resistência, que ainda é necessária nos dias de hoje.
Não estamos vivendo uma ditadura escancarada, mas tem todos esses grupos que estão sendo reprimidos, oprimidos, que estão sendo silenciados. Então é muito atual essa sensação de precisar resistir, de precisar trazer à luz gritos de liberdade.
Tanto que a gente, no filme, a maioria dos atores tem seus próprios nomes, porque era um grito que a gente sentiu que estava precisando gritar, claro que de forma diferente, porque cada movimento muda de acordo com a paisagem, do momento presente, social, político e cultural.
A carga política e social do filme devem dominar os debates, mas o filme também é um thriller de ação dos mais bacanas que o Brasil já produziu. Qual tua impressão sobre o ritmo que a direção deu ao filme?
É, eu quando assisti já sabia algumas cenas mais ou menos, mas o Wagner trouxe isso desses trabalhos que ele fez, muito do Tropa de Elite, do Narcos, tem muita ação, realmente. A câmera muito perto, você se sente ali, vendo como se fosse um filme de ação também, tem esse momento de tensão, as cenas de perseguição, tiroteio, muita ação mesmo.
Além de Marighella, você também tem, em breve, o lançamento de Urubus, que tem percorrido festivais independentes e super premiado. A agenda está cheia para os próximos meses?
Estou muito feliz com esses lançamentos, porque são projetos que foram feitos antes desse momento pandêmico, então foi tudo se arrastando. Foi um momento da minha carreira, que ainda estou construindo, que eu estava angustiada de conseguir alinhar o que eu faço, meu trabalho, com coisas que eu acredito, de estar disponibilizando o meu tempo, meu corpo e minha voz para coisas que eu quero que atinjam as pessoas, que tragam uma discussão.
Eu fiz Marighella, em seguida de Urubus, que é um filme sobre o pixo em São Paulo e foi feito com pixadores mesmo, sou a única atriz ali. E estou muito feliz que vão vir esses dois ao mesmo tempo, queria que o maior número de pessoas assistisse para, não só valorizar nosso cinema brasileiro, mas para entrar em contato com esses universos diferentes, histórias de grupos de pessoas, de motivações, que são muito silenciadas, apagadas.
Você tem uma carreira que transita muito bem entre a TV, as séries mais comerciais e esses projetos mais autorais. Como é que funcionam essas escolhas, como equilibrar isso?
Minha mãe é atriz e eu achava que eu ia ser engenheira, que eu era das exatas. Quando eu vi, já estava trabalhando e eu não pensava muito, não planejava muito, lidava de uma maneira profissional, muito separada. As coisas vão acontecendo.
A TV também dá essa possibilidade, mas nem sempre atores, artistas, podem escolher os projetos que querem fazer e nem todos os projetos que me interessam vão ter grana para serem realizados, todo mundo precisa pagar as contas.
Em algum momento eu também pude fazer essa escolha. Graças a alguns projetos mais comerciais, me mudei do Rio e vim morar em São Paulo, para poder escolher mais as coisas que eu tinha vontade de fazer, de entregar meu tempo, energia, meu corpo, porque acaba se misturando muito nessa profissão.
E eu fiquei muito feliz com esses outros projetos também, de fazer coisas maiores, mais comerciais, porque eles possibilitam esses outros que nem sempre são tão fáceis de existir. E porque, em algum momento, ser artista no Brasil virou quase demonizado, como se a cultura fosse menos importante, menos necessária.
Foi um momento que até eu comecei a acreditar nisso, porque eu falei: “gente tem uma profissão que não serve para nada, não vou estar mudando o mundo”. Eu pensei, “não, eu acredito que a cultura, que a arte pode ser agente transformador, pode ser agente de expressão de grupos e temas que estão sendo silenciados¨.
Então eu acho que essa balança é possível, entre fazer coisas para ter uma estrutura, estabilidade e as outras, uma coisa não anula a outra. E eu me divirto também. Tento tirar o melhor, até que não ultrapasse um limite do que vai muito contra o que eu acredito.
Desde a campanha presidencial de 2018, os artistas se tornaram um ponto importantíssimo de contestação principalmente ao governo Bolsonaro. Você acredita que esse é um ponto sem volta? Vai caber ao artista tomar um lado e cada vez mais ser formador de opinião?
Eu penso nisso para além de ser artista, independente de a pessoa ser cantor, ser uma atriz. Fico muito impressionada, e principalmente no caso de artistas com visibilidade, tendo um lugar de voz, de expressão, não usar isso, eu acho uma loucura, se isentar de opinião.
Acho que sim, todo mundo tem que se posicionar, as coisas do jeito que estão, você não querer mudar, já mostra que tem alguma coisa estranha sobre o jeito que você encara o mundo ao redor. Para mim, a cultura, a arte, pode ser um motor super importante para o consciente e o inconsciente coletivo.
Edição: Isa Chedid