Coluna

Como o Brasil dirá à ONU que vai privatizar a preservação florestal para salvar a Amazônia

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Áreas de florestas entram no jogo de compensações de emissões de gases de efeito estufa com políticas de entrega dos bens públicos à gestão privada - Foto: Mídia Ninja
Programa "Adote um Parque" foi criado em 2021 como política de incentivo a investimentos privados

Às vésperas da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26) em Glasgow (Escócia), a posição do governo brasileiro tem sido favorável em colocar as florestas no jogo de compensações de emissões de gases de efeito estufa e passar o chapéu para obter créditos florestais.

A exemplo da chamada “chantagem florestal” feita pelo então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a COP 25, em 2019, o governo chega a Glasgow para barganhar os termos da privatização do território nacional.

Agora com Joaquim Leite como ministro, que segue a mesma cartilha de Salles,  o Brasil busca traçar caminhos para concretizar essas posições, ainda que nesse momento, as negociações para a regulamentação do artigo 6 do Acordo de Paris não deva avançar para questões setoriais, além do regramento inicial dos mecanismos de mercado de carbono, fruto de muitas críticas por serem considerados falsas soluções à crise climática. 

::Como o desmonte de órgãos ambientais tem relação direta com o fogo nas florestas::

Como, então, esse ator que vem perdendo espaço nas negociações internacionais pela falta de credibilidade do governo Bolsonaro tem se estruturado em âmbito doméstico? De 2019 pra cá, o governo brasileiro tem avançado com o “desmonte” e o “remonte” das políticas ambientais tendo como foco as florestas, o que resulta no aprofundamento acelerado dos  processos de privatização, e ainda revela a estruturação de incentivos à entrega das florestas para o mercado.

O “desmonte” da política ambiental, no caso de Unidades de Conservação ocorrido a partir de 2019, por exemplo, se deu principalmente com a redução drástica dos recursos orçamentários ao ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

O “remonte” desta política se deu em alinhamento ao estabelecimento de mercados e mecanismos de compensações com florestas (offsets florestais), por meio da criação de vínculo de dependência entre a política de proteção florestal e o financiamento internacional e privado, como o Programa Adote um Parque e o Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais via BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento, com a Política de Desestatização.

É importante destacar que quando falamos em compensações com florestas e mercado de carbono, estamos nos referindo a um mecanismo que permite a um país vender reduções de emissões de CO₂, além das necessárias para cumprir suas metas climáticas, para que outro país possa contabilizar essas reduções em suas ações para cumprir a meta dele.

::Destruição da Reserva Chico Mendes ameaça legado de preservação ambiental na Amazônia Legal::

Ou seja, na prática é um incentivo para que os Estados-nação poluidores não alterem seu regime de consumo de recursos e produção, assim as empresas que irão receber aqueles créditos vão poder seguir poluindo, como fazem hoje.

O Programa Adote um Parque foi criado em 2021 como política de incentivo a investimentos privados em Unidades de Conservação, especialmente na Amazônia. Com doações de bens e serviços, empresas poderiam beneficiar comunidades locais em troca da possibilidade de visibilizar sua política de sustentabilidade e de obter o uso direto do território com intervenção no manejo de recursos madeireiros e não-madeireiros na Unidade.

A iniciativa de transferência de responsabilidade e captura de territórios despertou interesse de empresas como Coca-Cola, MRV Engenharia, Heineken e Carrefour, que assinaram protocolos de intenções com o Ministério do Meio Ambiente para fazerem parte da gestão de Unidades de Conservação no Brasil. 

O Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais do BNDES, anterior ao Programa Adote um Parque, promove a privatização de Parques por todo Brasil. O que seria apenas a concessão de serviços de gestão de Unidades se revela um mecanismo de controle de territórios com consequências territoriais e de controle da sociobiodiversidade.

Nestes programas, estão previstas mais de 200 Unidades de Conservação em todo o território nacional. O governo federal, que tem adotado práticas antidemocráticas, como a retirada da participação da sociedade civil de conselhos de gestão de políticas públicas, demonstra que os atores envolvidos na política de florestas serão apenas as corporações. Enquanto isso, as populações locais, principais afetadas por estas decisões, não foram sequer consultadas.


Populações tradicionais são as principais afetadas pelo “remonte” das políticas públicas de entrega da governança para a iniciativa privada, no entanto as comunidades não são consultadas / Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

A privatização de florestas deixa reféns ou dependentes as comunidades tradicionais em relação ao financiamento internacional e por empresas. Na COP, em que a pauta é a meta da neutralidade de emissões de gases de efeito estufa, a poluição é compensada com incentivos à proteção ambiental, mesmo que esses mecanismos não alcancem justiça climática para comunidades locais.

A lógica por trás desses mecanismos de compensações se repete nos programas Adote um Parque e concessões de Parques Naturais.

Estas falsas “políticas climáticas” que atendem apenas aos interesses financeiros empresariais vêm causando impactos avassaladores na expropriação de territórios, apropriação de recursos naturais, na violência real e simbólica sobre populações e seus modos de vida. Enquanto decisões são tomadas por decreto, estas definem os rumos das políticas que afetam a vida das populações que vivem em uma relação intrínseca com a floresta. 

Ao mesmo tempo em que avança o remonte das políticas ambientais com uma lógica neoliberal de que tudo é produto e, portanto, passível de lucro, essa visão também atende aos interesses de exploração da natureza pelo setor agropecuário, que vem avançando sobre territórios com as práticas já costumeiras de queimar para grilar áreas públicas.

Até 23 de agosto deste ano, o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou mais focos de incêndio do que o total registrado nos oito primeiros meses completos de 2020 na Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal, com um aumento de 8,5% nos focos de queimadas em relação ao mesmo mês de agosto do ano passado.


Comunidades da região do Tapajós se manifestam contra a criação de portos para escoar a produção de commodities que afetariam diretamente seus modos de vida e alimentação com a pesca / Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

 

A situação, que já era complexa, agora se torna dramática com ações por todo o país de expansão do complexo agroindustrial brasileiro, incluindo as infraestruturas logísticas de trens, linhões e mecanismos de escoamento de produção que colocam na linha de frente os corpos e os territórios de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, povos e comunidades tradicionais, camponeses e agricultores familiares, de todos os biomas do Brasil.

No momento que atravessamos, a COP 26 representa uma mesa de negociação para encaminhar ações paliativas, que mantêm a lógica desenvolvimentista e de lucro a todo custo em jogo. Na prática, é a consolidação do regime de governança climática internacional e, por isso, é importante a defesa de um projeto político para os biomas brasileiros, em especial a Amazônia, construído para e com os povos locais, respeitando os seus modos de viver.

Ao invés de entregar a governança das florestas para a iniciativa privada, soluções já existentes hoje são mais efetivas para redução das emissões dos gases de efeito estufa sem desrespeitar os direitos de centenas de povos e comunidades tradicionais espalhadas por todo o país; essa solução reside na demarcação de terras indígenas e quilombolas e na defesa das terras coletivas e dos direitos territoriais.

O protagonismo dos povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e camponeses/as e suas práticas de fortalecimento de iniciativas agroecológicas contribuem para a conservação da sociobiodiversidade, encurtamento dos circuitos de comercialização e a soberania alimentar.

*Texto elaborado por Pedro Martins, advogado, e Carol Ferraz, jornalista, integrantes do Grupo Carta de Belém, com contribuições de demais membros do Grupo Carta de Belém. A Amigos da Terra Brasil integra a articulação Grupo Carta de Belém.

**Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vinícius Segalla