RACISMO

Viu o amigo ser morto e foi preso: como testemunha negra foi parar na cadeia após ir à Polícia

Família, amigos e juristas afirmam que cor da pele foi fator decisivo para a prisão preventiva do auxiliar de farmácia

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Defesa de André argumenta que sua prisão preventiva é infundada, já que ele não tem antecedentes criminais e nenhuma das testemunhas ouvidas disse se sentir ameaçada - Divulgação

Movimentos sociais, familiares e amigos estão se mobilizando contra a prisão do auxiliar de farmácia André Arcanjo, homem negro de 41 anos detido como suspeito de ter cooperado com o latrocínio que presenciou em Areias, bairro da Zona Oeste do Recife. O crime aconteceu em 11 de julho; André, que a princípio colaborou com as investigações policiais como testemunha, passou a ser considerado suspeito e teve prisão temporária decretada no dia 6 de outubro. 

Na última quarta (20), o delegado Vitor Meira, da 4ª Delegacia de Polícia de Homicídios (DPH), responsável pelas diligências, concluiu o inquérito e o indiciou, expedindo o pedido de conversão para prisão preventiva. A defesa e as entidades que pedem pela sua liberdade apontam que há falta de provas para incriminá-lo, e consideram que a cor de pele de André tenha contribuído para a decisão em seu desfavor.

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No dia em que o crime ocorreu, um domingo, André, que também mora em Areias, foi convidado a visitar a casa do vizinho, conhecido como Valdo, de 71 anos, conta o advogado Wanderson Albuquerque, um dos que representam o auxiliar de farmácia. Ao chegar no local, ele encontrou na porta da frente outro colega, o pedreiro Fernando que realizava obras na parte de trás do imóvel.

“Fernando tem a chave e, quando abre a porta, ele entra primeiro, André entra em seguida e, 2 ou 3 segundos depois, dois assaltantes chegam atrás. Eles estavam no local, estacionados e de tocaia à espera de uma oportunidade”, relata.

Segundo Albuquerque, os assaltantes entraram no domicílio, onde, além de Valdo, estava almoçando com ele uma terceira testemunha, identificada como Rodrigo. “Eles passaram a pedir por dinheiro, e, em um dado momento, Seu Valdo teria tentado reagir. Eles conseguiram contornar a situação, levaram Valdo a outro cômodo, e poucos minutos depois aconteceram os disparos. Os assaltantes fugiram às pressas”, conta o advogado. A especulação é que a vítima guardaria somas de dinheiro em casa.

Fernando foi o primeiro a sair da casa para pedir socorro, seguido por André, que ainda realizou os primeiros socorros para tentar salvar o amigo. Seu Valdo, no entanto, não resistiu e morreu no local. André foi sem advogados à delegacia, onde narrou todo o ocorrido e entregou seu telefone.

“O celular foi apreendido e ficou à disposição da justiça porque lá consta o registro do convite para ele comparecer à residência. Isso, por si só, já seria capaz de demonstrar que não há envolvimento no crime. Pelo vídeo das câmeras, o carro dos assaltantes estava estacionado há mais de 30 minutos esperando uma oportunidade”, sustenta Albuquerque.

Mas, para a Polícia Civil de Pernambuco (PCPE), André teria facilitado a entrada deles na casa. “Na linha investigativa, o fato de André ter demorado 2 ou 3 segundos para fechar a porta colaborou com a ação dos assaltantes. Essa é a única coisa que o vincula. Na opinião da defesa, essa demora não justifica a autoria e agora o seu indiciamento”, comenta o advogado.

No dia 6, foi efetuada a prisão temporária não só de André, como de Rodrigo e de um terceiro homem suspeito de ser um dos assaltantes. Albuquerque explica que a prisão temporária é um recurso para facilitar a investigação, que teria validade de 30 dias, prazo para finalização do inquérito.

“No dia 20, o delegado terminou as investigações. Ele fez o indiciamento: na opinião da Polícia, eles três foram os responsáveis pela morte de Seu Valdo. O delegado fez ainda o pedido de conversão da prisão temporária (cautelar, que busca a investigação), para preventiva, que é uma prisão processual”, contextualiza.

O advogado critica a decisão, uma vez que a prisão preventiva só pode ser decretada em três hipóteses: para garantia da ordem pública (quando é uma pessoa reincidente, comete crimes reiteradamente); garantia da instrução processual (para aquelas pessoas que ameaçam testemunhas e podem comprometer o andamento do processo); e aplicação da lei penal (quando há o risco de fuga por parte do preso).

“No caso do André, a gente demonstrou que nenhum desses requisitos permanece. Ele é uma pessoa com emprego e moradia fixos; nenhuma testemunha ouvida disse se sentir ameaçada; e ele não tem passagem nenhuma pelo sistema criminal. Não há registro que desabone sua conduta”, argumenta. 

“Estou aqui fora clamando por justiça, porque lá dentro ele está sem voz”

Detido no Centro de Observação Criminológica e Triagem Prof. Everardo Luna (Cotel), localizado em Caetés II, no município de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, André recebeu uma única visita da mãe na última quarta (20).

“Eu saí de lá tão deprimida, não tem nem palavras.Parece que ele está emocionalmente desorientado. Está sendo muito difícil, mexe muito com o emocional”, relata a mãe, que deseja preservar sua identidade por medo de retaliação.

Desde a prisão de André, a mãe tem tomado a frente na luta por justiça pelo filho. “O irmão dele trabalha e não pode estar à frente, eu tenho que estar. Mesmo à base de tranquilizante, eu tenho que estar. Porque, se eu arriar, não tem quem lute pela inocência dele. É dor demais pra uma mãe dormir e acordar sabendo que seu filho inocente está dentro do Cotel. Eu vivo à base de remédio pra poder caminhar e resolver as coisas pra ele. Eu tenho que estar de pé. Enquanto eu tiver voz, eu vou gritar por justiça”, afirma.


Uma petição online pedindo por justiça no nome de André Arcanjo já ultrapassou mais de 7.500 assinaturas / Reprodução

Ela conta que André tinha uma relação de mais de 20 anos de amizade com Valdo. “Ele tem uma esposa com Mal de Alzheimer. André, que já trabalhou em hospital, costumava ir dar banho nela. Ele não tinha cuidador, o cuidador da esposa dele era André, sem receber um centavo, porque ele é prestativo”, relata. “No dia 11 aconteceu esse assalto. Infelizmente, ele chegou na hora errada, no dia errado. Eu conheço André, é meu filho. André Arcanjo Tavares, homem de caráter, menino de igreja, menino baterista. É um absurdo o que estão fazendo com ele.”

André frequenta a Igreja Mangue, localizada no Bairro do Recife. Além de ser percussionista na banda, ele também virou responsável pelas plantas do local. Maelyson Rolim, pastor da igreja, conta que ele ia toda semana regar e fazer mudas. “Ele tem um cuidado inspirador, virou o especialista de plantas. É um homem extremamente calmo, muito sereno e tranquilo”, atesta.

“Prisão de André é reflexo de racismo estrutural”

Diante do caso, movimentos sociais têm se articulado para somar na luta pela liberdade de André. Anna Beatriz Silva, advogada criminalista especialista em Direito Penal e Processo Penal, integra a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE) e destaca que o pedido de prisão preventiva está aliado a práticas de seletividade penal.

“Essas práticas acabam por reverter os valores da Constituição que garantem a passagem pelo processo criminal sem ser culpabilizado por isso. A gente sabe que a prisão preventiva não se pauta por motivos processuais latentes, ela vem como um cumprimento antecipado de pena, o que é completamente inconstitucional e não está amparado pela Constituição”, afirma Anna Beatriz.

“Nesse sentido, a prisão de André é, sim, um reflexo do racismo estrutural que naturaliza e perpetua a utilização da prisão preventiva e prisão cautelar como forma de responsabilização antes de um trânsito em julgado, antes da avaliação das provas, antes do transcorrer processual”, diz. 

De acordo com a especialista, essa é uma prática comum no Estado. “O Judiciário de Pernambuco, principalmente os juízes de primeiro grau, mantêm as pessoas presas preventivamente se esquecendo do caráter constitucional, única e exclusivamente para que elas cumpram pena de maneira antecipada. Eu reitero: essa prática é ilegal e potencializa o racismo e o domínio sobre corpos negros”, defende.

A Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito também classificou a prisão como injusta. “Acreditamos que assistimos mais uma vez à prática recorrente da Polícia de Pernambuco de olhar para homens negros como criminosos, de fazer com que a cor da pele diga quem é e quem não é culpado de determinado crime”, denuncia Ailce Moreira, uma das integrantes do movimento. 

“Nós acreditamos enfaticamente na inocência de André porque não existe no processo judicial provas que sustentem a sua incriminação. André é um homem trabalhador, solícito, digno da confiança da sua comunidade de fé e dos colegas de trabalho”, afirma.

Procurada pela reportagem, a PCPE informou em nota que deu cumprimento ao Mandado de Prisão expedido pela 1ª Vara Criminal da Capital no dia 6, e que o Inquérito Policial foi concluído e remetido à Justiça ainda na quarta.

Cabe agora ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) analisar o procedimento e manifestar se vai oferecer denúncia e acatar o pedido de prisão preventiva.

Uma petição online pedindo por justiça no nome de André Arcanjo já ultrapassou mais de 7.500 assinaturas de pessoas de todo o Brasil.

 

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga