“Quando eu comecei a menstruar, tinha 11 anos. Absorvente às vezes tinha, mas, muitas vezes, não. Tínhamos os paninhos de menstruação. Quando os lençóis ou camisetas estavam velhos, minha mãe os cortava. Dobrávamos em muitas camadas para que eu me forrasse pra ir pra aula. Minha mãe sempre buscava formas pra que eu me sentisse segura e seguisse firme nos estudos. Mas era meio impossível naquele caso. Meu fluxo era muito forte. Eu precisava de pedaços bem grandes pra fazer muitas camadas por medo de vazar. Aquilo era extremamente desconfortável fisicamente e emocionalmente. Obviamente, se não tinha dinheiro pra absorvente, não teria pra comprar um monte de panos. Em casa, eles eram lavados e passados pela mamãe pra que eu pudesse reutilizar.”
Esse é o relato feito pela jornalista Waleiska Fernandes no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou a distribuição gratuita de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade social, prevista em projeto de lei aprovado em setembro no Congresso Federal.
:: Dignidade menstrual é um direito das mulheres ::
A realidade vivida por Waleiska ficou no passado. Mas é o presente de milhares de meninas e mulheres brasileiras que são impactadas pela falta de absorventes. Como é o caso da Dona Neri Maria de Andrade, de Porto Amazonas (PR). “Uso até hoje pano porque não tem dinheiro para comprar. Eu sou mãe solo e às vezes a gente não tem dinheiro para comprar um pão, imagina isso daí”, relata.
Outra moradora de Porto Amazonas, que não quis ser identificada, conta que o início do seu ciclo menstrual foi permeado pela falta de informação e condições financeiras da família. “Veio a primeira vez e eu não sabia o que era. Comecei a tirar escondida espuma do colchão para colocar. Cheguei a queimar as espumas e calcinhas por medo e vergonha”, conta.
:: Por que pagamos por absorventes? ::
O argumento do presidente para o veto foi a falta de recursos. O que, diante da pobreza menstrual, isto é, a falta de acesso a recursos e instrução para que administrem o próprio período menstrual com dignidade, é mais uma forma para continuar invisibilizando a população feminina de baixa renda.
De acordo com o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Fundo de População da Organização das Nações Unidas (ONU), 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e mais de quatro milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais.
Risco de infecção urinária
A falta de água e absorventes é vivida diariamente pelas mulheres da Ocupação Guaporé, do bairro Campo Comprido, em Curitiba. Suellem Ferreira dos Santos, liderança popular, conta que além da falta de absorventes, não existem condições mínimas para garantir a higiene.
“A gente vive a falta de saneamento básico, falta de água, falta de chuveiro nas casas e, no final das contas, as mulheres daqui precisam escolher entre comprar absorvente ou comida”, diz. “Tem algumas que compram um absorvente e ficam com o mesmo o dia inteiro para economizar. Aí, acabam com infecção urinária. Muitas daqui têm infecção”, complementa. Suellem coordena um ateliê na ocupação e pretende começar um projeto para produzir absorventes de pano.
::Entrevista: "A pobreza menstrual é um problema de saúde pública"::
Iniciativas sociais
Assim como esse ateliê, antes mesmo do veto de Bolsonaro, várias entidades no Brasil se mobilizam para fazer chegar itens básicos necessários para as mulheres em seus períodos menstruais.
É o caso do Coletivo Igualdade Menstrual, no Paraná, que tem como objetivo instruir, arrecadar e fazer a distribuição de absorventes e coletores menstruais para que mulheres em situação de vulnerabilidade social possam administrar a higiene durante o ciclo. O projeto já foi responsável pela doação de mais de 20 mil absorventes em penitenciárias e comunidades carentes de Curitiba e municípios vizinhos.
:: Lei que prevê distribuição de absorventes higiênicos no DF não saiu do papel ::
Para Andressa Andrieli do Carmo, uma das coordenadoras do Coletivo, o veto de Bolsonaro é mais uma marca negativa do atual governo. “É um grande retrocesso na luta pelos direitos das mulheres. Existem recursos, sim, para viabilizar essa política pública. Quando o presidente veta a possibilidade de dar condições para que estudantes não faltem a aulas, mulheres não fiquem sem trabalhar, é muito triste. Mas não vamos desistir”, afirma.
Lei aprovada no Paraná
Combater a pobreza menstrual e garantir dignidade a adolescentes e mulheres paranaenses em situação de vulnerabilidade social e econômica. Esses são os principais objetivos da lei 20.717/2021, aprovada na Assembleia Legislativa e assinada por vários deputados e deputadas, e, posteriormente, sancionada pelo governador Ratinho Junior (PSD). O projeto original determina a distribuição de absorventes higiênicos em escolas e unidades básicas de saúde.
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A proposta determina ainda que o Poder Executivo poderá receber doações de absorventes higiênicos de órgãos públicos, sociedade civil, ONGs e iniciativa privada para distribuição gratuita às estudantes e população em vulnerabilidade social.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Frédi Vasconcelos e Lia Bianchini