Agricultoras que se expõem a pesticidas sem equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados tendem a desenvolver subtipos mais agressivos de câncer de mama, com piores prognósticos de tratamento.
O câncer de mama é o que mais mata mulheres no Brasil, e a necessidade de prevenção é o mote da campanha Outubro Rosa. No sudoeste paranaense, região produtora de alimentos, a incidência e letalidade desse câncer são maiores que a média nacional.
Pesquisadores da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em Francisco Beltrão (PR), observaram essa tendência ao longo dos últimos seis anos.
Ao se deparar com as estatísticas, a médica e pesquisadora Carolina Panis analisou as especificidades da região e levantou hipóteses.
“Quando olho um câncer no laboratório, não consigo dizer se ele foi causado por agrotóxico ou não. Então, a gente trabalha com epidemiologia, olhando para a história dessas pessoas. Quando fazemos esse movimento, fica muito claro: elas têm câncer mais jovens, têm tipos de câncer raros na população geral, e um câncer extremamente agressivo”, ressalta.
Doutora em Patologia, Carolina Panis foi a campo e ficou espantada com a dinâmica de aplicação dos venenos. A maioria dos agricultores passam centenas de horas por ano em contato com pesticidas sem proteção.
Cabe às mulheres preparar a substância e dar suporte ao marido e aos filhos, que geralmente assumem a tarefa da pulverização.
O papel desempenhado por elas é um dos diferenciais do sudoeste paranaense em relação a outras regiões produtoras.
“A mulher pega o potinho onde está o agrotóxico sem luva, sem EPI nenhum. Nosso levantamento mostrou que 94% dessas mulheres se expõem dessa forma: preparando esse ativo para o filho ou o marido aplicar, ou ainda lavando as roupas”, relata a médica.
“Elas colocam a roupa que o homem trabalhou o dia inteiro dentro da máquina de lavar junto com a roupa do bebê, junto com a toalha de banho. Então, a família toda é exposta.”
A pesquisadora da Unioeste lembra que o relevo da região é acidentado, o que dificulta o uso de tratores. A aplicação é feita por meio de bombas de pulverização, que os agricultores carregam nas costas.
“As mães colocam a bomba nas costas do filho. Elas praticamente tomam um banho de pesticida nesse momento, porque a bomba vaza com o impacto nas costas. E esse menino passa o dia inteiro aplicando com a roupa molhada, contaminado”, descreve Carolina Panis.
A contaminação por agrotóxicos se dá por meio da pele e do aparelho respiratório.
O incômodo e o desconforto das roupas, máscaras e botas para pulverização, especialmente em dias de calor, estão entre os motivos citados para não utilização dos EPIs.
Bola de neve
Em mais de 90% das propriedades rurais do sudoeste do Paraná, predomina a agricultura familiar.
Embora os pesticidas sejam comumente associados aos grandes monocultivos do agronegócio, milhões de camponeses são reféns da narrativa de que só se produz comida com veneno.
Por falta de informação e de assistência técnica, os cultivos orgânicos, sem agrotóxico, ainda são minoria. O Brasil tem 5 milhões de pequenas propriedades rurais e apenas 25.345 produtores orgânicos, segundo o Ministério da Agricultura – em 2011, eram 8 mil.
Um dos entraves é que muitos programas de financiamento estão atrelados à aquisição de pesticidas.
“Lembro de uma roda de conversa do Outubro Rosa em que uma agricultora viúva me disse: ‘Depois que meu marido faleceu, fui ao banco para fazer um financiamento para produzir alimentos. Eu não queria comprar o pacote de venenos, mas disseram que, sem ele, eu não ia ter acesso ao seguro, e sem seguro não tem financiamento’. Então, é uma bola de neve, que torna muito difícil fugir dessa lógica”, relata Panis.
Ubirani Otero, chefe da Área Técnica Ambiente, Trabalho e Câncer do Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde, lembra que há outros fatores consolidados cientificamente como causadores de câncer de mama, para além dos agrotóxicos.
A especialista afirma que não existe nível seguro de exposição a agentes cancerígenos, portanto o uso de EPIs não garante proteção total.
“Agrotóxicos vêm sendo associados a vários tipos de câncer, especialmente no sistema hematológico, sistema nervoso central, estômago, e várias outras localizações”, diz.
Otero observa que o desenvolvimento da agroecologia oferece possibilidades de mudança gradual dos modelos produtivos no campo.
“Até os anos 1960, a proteção da lavoura das pragas e dos insetos era feita com recursos naturais. É o que preconiza a agroecologia. Com a evolução da indústria de agrotóxicos, muito desse conhecimento – que era passado de pai para filho – foi perdido, e precisa ser resgatado”, avalia.
Agressividade e tratamento difícil
O câncer de mama tem quatro subtipos. O menos agressivo e com melhor prognóstico é o luminal A. Este é o mais comum no Brasil e no mundo. No sudoeste do Paraná, o luminal A é minoria: entre 60% e 70% dos diagnósticos são dos subtipos mais agressivos, de pior prognóstico: luminal B, HER2 positivo e triplo negativo.
O estudo da Unioeste aponta que esse perfil diferenciado tem relação com a exposição ocupacional aos pesticidas – e com o papel das mulheres na dinâmica da aplicação. As pesquisas lideradas por Carolina Panis mostram ainda que os agrotóxicos são fator determinante para quimiorresistência.
Em outras palavras, a quimioterapia costuma ser menos eficaz em pacientes que manuseiam e têm contato frequente com esses ativos sem proteção, como as agricultoras familiares do sudoeste do Paraná.
Em novembro de 2018, o médico Daniel Rech, orientado por Panis, publicou uma dissertação de mestrado sobre o tema. A partir das amostras de 127 pacientes com câncer de mama, identificou-se que 25,8% eram luminal A, 38,7% luminal B, 8,1% triplo positivo e 19,4% HER2.
“Houve um predomínio de pacientes jovens inseridas nos subtipos mais agressivos, e 50% das pacientes encontram-se abaixo dos 50 anos”, diz o texto.
Consumidores também têm risco?
A equipe da Unioeste não se debruçou sobre os riscos de quem consome alimentos com resíduos de agrotóxicos. As investigações mais avançadas sobre o tema vêm sendo compiladas desde 1993 pelo Estudo da Saúde Agrícola (AHS, na sigla em inglês), que envolve especialistas de quatro agências de pesquisa nos Estados Unidos.
As particularidades identificadas no sudoeste do Paraná e o rigor científico das publicações feitas na Unioeste chamaram atenção da Universidade de Harvard, nos EUA. Carolina Panis atuou como pesquisadora visitante na instituição, entre 2019 e 2020, e espera publicar em breve estudos sobre os impactos do consumo de água contaminada com pesticidas no Brasil.
Identificar e comprovar qual o agente causador de um câncer é desafiador porque requer isolar todos os demais fatores. Por isso, os processos judiciais que avançaram pelo mundo, responsabilizando empresas por doenças provocadas ou agravadas por pesticidas, são quase todos relacionados à exposição de trabalhadores e trabalhadoras.
Nesses casos, é mais fácil demonstrar que houve exposição severa, contínua, ao longo de anos.
Ubirani Otero, do Inca, cita evidências científicas recentes que apontam um grupo específico de agrotóxicos como possíveis causadores de câncer de mama – e não só para agricultoras. Esses estudos são reconhecidos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês).
“Nesse grupo estão os agrotóxicos organoclorados, que eram muito utilizados até a década de 1980 e foram proibidos no mundo inteiro, inclusive no Brasil”, observa.
“Eles agem como desreguladores endócrinos. Essa desregulação hormonal é um mecanismo importante do desenvolvimento de tumores, entre eles o câncer de mama.”
Apesar do banimento, Otero enfatiza que os organoclorados ainda causam preocupação no Brasil. Primeiro, porque há notícias da entrada e aplicação clandestina de agrotóxicos. Em segundo lugar, porque esses venenos podem causam problemas décadas após sua aplicação.
“Eles são organopersistentes, ou seja, permanecem no solo, nas águas e no ar durante muitos anos. A degradação é muito lenta. E o câncer leva muito tempo desde a exposição até o diagnóstico da doença”, ressalta.
“Esses agrotóxicos se acumulam nos tecidos gordurosos, como a mama. Então, para além do câncer de mama, a gente ainda encontra organoclorados no leite materno, e isso passa para o bebê”, completa a pesquisadora do Inca.
Estudos semelhantes aos da Unioeste vêm sendo realizados em outras instituições de pesquisa pelo país, especialmente em regiões onde há predomínio de monocultivos. A maioria esbarra na dificuldade de confirmar a exposição a agrotóxicos como elemento central para o aumento nos índices de câncer de mama.
Mesmo que não haja estudos que comprovem a associação entre um tipo específico de agrotóxico e o câncer de mama, o Instituto recomenda que os produtores não se arrisquem.
“A recomendação do Inca é evitar o uso de agrotóxicos, como precaução. Mesmo que não haja evidências suficientes, existem possibilidades [de causar câncer]. Se não for possível, de imediato, essa substituição, que se reduza o uso.”
Nos dois primeiros anos de Jair Bolsonaro (sem partido) como presidente da República, o Brasil quebrou recordes de liberação de novos agrotóxicos. Em 2019, foram 474. No ano passado, 493.
No último dia 8, o presidente publicou um decreto que facilita a aprovação e o registro de novos pesticidas no país.
Edição: Anelize Moreira