Balanço

"CPI parou o genocídio": senadores celebram vitórias e dizem que comissão "não acabou em pizza"

Mesmo antes de relatório, membros da comissão apontam que investigação evitou mais mortes e corrupção na pandemia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Simone Tebet (MDB-MS), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Rogério Carvalho (PT-SE), Renan Calheiros (MDB-AL) e senador Humberto Costa (PT-PE) - Marcos Oliveira/Agência Senado

A CPI da Pandemia "não acabou em pizza". A constatação é de senadores que integram a comissão e que foram ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato nas últimas semanas. De acordo com os congressistas, a investigação parlamentar cumpriu o papel de "estancar o genocídio" promovido por meio de ações e omissões do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. 

O relatório final, que será lido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) na quarta-feira (20) – a leitura estava agendada para terça (19), mas foi adiada no domingo (17) –, irá refletir o teor das duas linhas principais de acusação contra o Executivo: a primeira é a prática "negacionista" materializada em um suposto boicote à compra de vacinas e na apologia a tratamentos ineficazes; a segunda tem como foco a corrupção no Ministério da Saúde.

A votação do relatório está marcada para a terça-feira da semana seguinte, dia 26. A decisão pelo adiamento da leitura e da votação foi do presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), diante de divergências dos senadores em relação a pontos que estarão presentes no texto.

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Durante a semana passada, Calheiros chegou a afirmar que apenas ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deveriam ser imputados 11 tipos penais diferentes: epidemia com resultado morte; infração de medica sanitária; emprego irregular de dinheiro público; incitação ao crime; falsificação de documento particular; charlatanismo; prevaricação; genocídio de povos indígenas; crimes contra a humanidade; crimes de responsabilidade e homicídio por omissão.

Outros senadores apontaram, durante o final de semana, que o ideal seria delimitar a lista de delitos em torno de quatro ou cinco crimes, o que, segundo eles, já seria suficiente para responsabilizar Bolsonaro pelas 600 mil mortes por Covid-19 e a má condução do combate à pandemia. Os pontos devem ser debatidos em sessão desta segunda-feira (18). Pela manhã, será ouvido o integrante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Nelson Mussolini. À tarde, serão ouvidas pessoas que perderam amigos e parentes para a covid-19. Todas as regiões do país serão representadas entre os depoentes.

Desde o início de agosto, a reportagem conversou, com exclusividade, com os seguintes integrantes da comissão: Rogério Carvalho (PT-SE), Randolfe Rodrigues (REDE-AP), Renan Calheiros (MDB-AL), Humberto Costa (PT-SE) e Simone Tebet (MDB-MS). Também foram ouvidos especialistas, como o epidemiologista Pedro Hallal, que chegou a depor à CPI, e o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro. 

O balanço positivo do trabalho da CPI, segundo os senadores, é comprovado pelo derretimento do índice de aprovação de Bolsonaro. No início dos trabalhos da comissão, em maio, o chefe do Executivo era reprovado por 45% da população, segundo pesquisa do DataFolha. Em setembro, a reprovação chegou a 53%, recorde desde que assumiu o cargo. 

Outro elemento apontado pelos membros da CPI é a aprovação da própria comissão perante à opinião pública. De acordo com pesquisa feita pelo Instituto DataTempo em setembro, 71,5% das pessoas que acompanham a CPI aprovam os trabalhos dos senadores na comissão. Outros 26,5% desaprovam e 2% preferem não responder. 

CPI expôs o negacionismo 

Em conversa exibida pelo programa BdF Entrevista, Calheiros disse que, "do ponto de vista da Comissão Parlamentar de Inquérito, o importante sempre foi proteger a vida das pessoas, defender a ciência, levar o Brasil de volta para essa racionalidade e enfrentar o negacionismo". Antes da instalação da comissão, a escolha do senador do MDB para a relatoria motivou decisão judicial que o impediu de assumir o posto. A ordem, contudo, foi revertida em segundo grau de apreciação. 

O combate à prática negacionista foi a marca da primeira metade da CPI, que teve como centro a investigação sobre a existência de um "gabinete paralelo". A estrutura, composta por médicos que fazem apologia a tratamentos comprovadamente ineficazes, teria sido comandada por profissionais da saúde como a oncologista Nise Yamaguchi, o virologista Paolo Zanotto e o médico Luciano Azevedo. 

Em junho, o Brasil de Fato mostrou que o grupo de médicos pró-cloroquina fez uma reunião secreta na sede do Ministério da Saúde, em Brasília, em 9 de setembro de 2020, dia seguinte a uma reunião no Palácio do Planalto em que médicos debateram a criação de um "gabinete das sombras" sob comando de Bolsonaro e do deputado Osmar Terra (MDB-RS). 

Ex-ministro da Saúde, o senador Humberto Costa (PT-PE), disse que, motivado por um aconselhamento indevido, o governo Bolsonaro buscou a imunidade coletiva pela transmissão da doença, o que ele classifica como uma “estratégia criminosa”.  

"Daí decorrem todos os tipos de crimes e ações equivocadas, como omissão nos testes, nas vacinas, a demora em viabilizar o acesso das pessoas aos leitos de UTI, a vacina propriamente dita, a orientação para o uso de medicamentos que não tem nenhuma eficácia contra a covid-19, bem como todo o negacionismo aplicado pelo governo", elenca. 

Para Humberto Costa, a CPI já entrou para a história ao catalisar a atenção do país para as investigações acerca da gestão da pandemia. “Terminou a CPI sendo um catalisador não somente da atenção na população, mas também da insatisfação da população e, por isso, ela cumpriu um papel muito grande: Expôs todos os erros, os equívocos, as omissões, as ações perpetradas pelo governo federal que nos conduziram a essa realidade de uma situação trágica do ponto de vista sanitário, do ponto de vista social, do ponto de vista político, do ponto de vista econômico”, afirma Costa. 

De acordo com Pedro Hallal, "a CPI da Covid é um marco na história desse país, porque foi um lugar onde tivemos discussões importantes para restabelecer o papel da ciência, da tecnologia, da educação, da informação, tudo isso foi necessário, foi muito bem feito na CPI". 

O epidemiologista gaúcho, contudo, fez uma crítica ao trabalho da comissão: "A partir do dia seguinte ao meu depoimento, foram os irmãos Miranda. Isso realmente mudou o foco da CPI. Começou a se revelar um esquema de corrupção que não é específico da pandemia, mas um esquema de corrupção que já vinha no Ministério da Saúde. (...) A minha única crítica à CPI da Covid foi não ter sabido separar bem os dois momentos que ela viveu". 

“CPI estancou a corrupção” 

Apesar das críticas sobre a atuação da CPI depois que passou a investigar esquemas de corrupção na Saúde, os senadores dizem que a comissão deu conta de impactar a continuidade de desvios e "constranger" agentes públicos e lobistas que tentavam lucrar no combate à pandemia. 

"Conseguimos impactar a continuidade da corrupção e da negociação. Eles pediram dinheiro adiantado do contrato. Um contrato de R$ 1,614 bilhão. (...) Uma coisa cheia de regularidade e indefensável em todos os aspectos. Isso tudo serviu para demonstrar ao Brasil que, além de não querer vacina, de não comprá-las na hora certa, quando decidiu comprá-la, o governo o fez por atravessadores, que queriam potencializar e potencializar o preço dessas vacinas", afirmou Renan Calheiros. 

Na entrevista ao Brasil de Fato, Humberto Costa fez uma leitura parecida: "Quando o governo finalmente resolveu finalmente comprar vacinas, foi atrás de intermediários em processos equivocados do ponto de vista da licitude". Para o petista, as investigações acerca dos supostos esquemas de corrupção envolvendo figuras do Ministério da Saúde pode ter balançado essa “estrutura criminosa” dentro da pasta. 

A senadora Simone Tebet (MDB-MS) elencou, nesse sentido, algumas mudanças concretas que ocorreram a partir dos trabalhos da comissão, que “freou as tentativas de superfaturamento na compra de vacinas, inclusive com a paralisação do pagamento do contrato da Covaxin”, como levantado pelos senadores Humberto Costa e Renan Calheiros. 

A paralisação veio após o depoimento do deputado federal Luis Claudio Fernandes Miranda (DEM-DF) e do irmão Luis Ricardo Fernandes Miranda, chefe da divisão de importação do ministério da Saúde, que apontaram para um suposto esquema de fraude na negociação para a compra de 20 milhões de doses do imunizante Covaxin, envolvendo o Ministério da Saúde e a empresa brasileira Precisa Medicamentos, que seria a responsável pela venda da vacina no Brasil, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech.   

O deputado afirmou que o Bolsonaro teria sido alertado sobre o esquema de fraude no dia 20 de março deste ano, quando os irmãos foram pessoalmente até o presidente levar a documentação que provaria o esquema. Depois do encontro, o presidente teria solicitado ao então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, a investigação da denúncia.

Dois dias depois, no entanto, Pazuello foi exonerado, e a investigação ficou a cargo do então secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco. A investigação não foi para frente. Ainda durante o encontro, o ex-capitão teria atribuído o esquema ao líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR).  

Com as descobertas da CPI da Pandemia, o governo federal decidiu suspender o contrato da Covaxin, que havia sido anunciado em 25 de fevereiro. Até agora, nenhuma dose da vacina chegou ao Brasil. 

Militares nos supostos casos de corrupção 

Para Tebet, o que mais “entristece” é que ao lado de figuras políticas “nós tivemos o núcleo militar também participando desse processo, o que é lamentável diante do respeito e da credibilidade que tem as Forças Armadas brasileiras”.  

De fato, ao longo da CPI, diversos nomes de militares surgiram e até sentaram na cadeira da comissão: Elcio Franco, Eduardo Pazuello, o ex-chefe da Casa Civil, o general Braga Netto, tenente-coronel da reserva e ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, Marcelo Blanco, o também tenente-coronel da reserva Helcio Bruno de Almeida, presidente da ONG Instituto Força Brasil, o tenente-coronel Alex Lial Marinho, nomeado por Elcio Franco para a Coordenação de Logística, entre outros nomes. 

Nas palavras de Tebet, “mais do que constrangimento”, militares e nomes do campo político devem ser indiciados. “Portanto, poderão ser investigadas pelo Ministério Público, denunciadas junto ao poder judiciário, responder por responsabilidade administrativa, no caso de servidores públicos, e outros crimes na esfera cível.” 

De acordo com a visão do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que também vem atuando nos bastidores da CPI ao assessorar parlamentares, a comissão deveria ter escutado mais militares. “Eu acho que faltou sentar gente naquela cadeira, entre eles alguns chefes militares que atuam num círculo muito próximo ao Bolsonaro que têm grande responsabilidade. Braga Netto, por exemplo. Me parece que teria sido extremamente importante que eles tivessem sido chamados para dar esclarecimentos, pela participação que eles tiveram”, afirmou Chioro. 

O ministro da Defesa, general Braga Netto, é considerado uma das pessoas influentes entre o Ministério da Saúde que esteve à frente da Casa Civil durante o maior período da pandemia do novo coronavírus no país. 

Tribunal de Haia, PGR, Câmara dos Deputados e STF

É praticamente unanimidade entre as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato que a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro em decorrência dos trabalhos da CPI é improvável.  

Segundo o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que é vice-presidente da comissão, um relatório será levado ao Ministério Público, que, na figura da Procuradoria-Geral da República, poderá abrir uma investigação contra o presidente Jair Bolsonaro no que cabe aos crimes comuns apontados pelos senadores. Outra parte será encaminhada à Câmara dos Deputados, onde devem ser analisados os crimes de responsabilidade. No entanto, “é de conhecimento de todos as posições do senhor Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e do senhor procurador-geral da República, o doutor Augusto Aras”.  

Na mesma linha, Rogério Carvalho (PT-SE) afirmou que não acredita no avanço de um possível impeachment do chefe do Executivo. "[O impeachment] depende muito do quanto a sociedade vai estar mobilizada. E da capacidade que Bolsonaro terá de manter sua base na Câmara dos Deputados para se defender da votação de um impeachment. Eu creio que ele vai se tornar um cadáver insepulto e permanecerá no governo. A base dele na Câmara deve sustentá-lo", avaliou. 

Para Simone Tebet, o crime de responsabilidade também não deve ter algum tipo de encaminhamento na Câmara. “Fosse assim, Arthur Lira, presidente da Câmara, já tinha aberto o processo de impeachment em relação às outras dezenas de denúncias”, afirma.  

Já em relação à PGR, a parlamentar demonstra mais preocupação e afirma que se trata se uma “gravidade ímpar”. “É o órgão constitucional com maior poder de investigar, apurar, denunciar e, obviamente, ser parte num processo judicial de crime de corrupção e de omissão na área penal contra as autoridades públicas federais. Mas eu acredito piamente que vai haver uma pressão da base sobre o PGR.” 

De qualquer maneira, segundo Randolfe Rodrigues, o relatório não ficará refém das posições da PGR e da Câmara dos Deputados. Outros dois caminhos vêm sendo estudados pelos senadores. O primeiro é no Supremo Tribunal Federal. “Existe possibilidade de uma ação penal no STF. Faremos de tudo para que o relatório não seja objeto de gaveta. Nós iremos dar todos os caminhos necessários para que o relatório final da CPI tenha as consequências que deve ter.” 

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No Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, na Holanda, a CPI também pretende abrir mais uma representação contra Bolsonaro. "Há um debate sobre cometimento de crime contra a humanidade e a possibilidade de genocídio, que levaria a um processo que pode chegar até o Tribunal de Haia, na Holanda", disse ao Brasil de Fato o senador Humberto Costa. 

Após a leitura do relatório, no dia 19 de outubro, o documento será votado pelos senadores no dia seguinte (20).  

Edição: Vinícius Segalla