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Artigo | Comando Sul terá primeira mulher na liderança; troca significa mudança de política?

Parte do Departamento de Defesa dos EUA, grupo cuida dos interesses do país na América do Sul, América Central e Caribe

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Joe Biden durante discurso acompanhado pela general Jacqueline Van Ovost (à esq.) e a então tenente-general Laura Richardson, na Casa Branca, em Washington, D.C., em março deste ano - Mandel Ngan/AFP

O Comando Sul (U.S. Southern Command) é um dos 11 Comandos Combatentes Unificados que integram o Departamento da Defesa dos Estados Unidos. Responsável geograficamente por afirmar os interesses do país na América do Sul, América Central e Caribe, providencia “planejamento de contingência, operações e proteção de cooperação de segurança […] dos recursos militares dos EUA”, além de “garantir a defesa do Canal do Panamá”. Instituição atualmente localizada na Flórida, o Comando Sul conta com 1.200 funcionários militares e civis e tem componentes também em outras regiões dos EUA, além de Cuba e de Honduras.

Tendo como foco o combate ao tráfico de drogas e às ameaças externas, suas atividades são, no entanto, muito mais complexas do que as comumente autoproclamadas. Criado ao final da Segunda Guerra Mundial e dando prosseguimento à presença e às intervenções (incluindo militares) estadunidenses na América Latina desde o século XIX, o Comando Sul tem uma ampla, profunda e consolidada atuação na região.

Por meio de estratégias de consenso e de coerção, esse Comando elabora e executa programas de treinamento das forças armadas e policiais em toda América Latina; atua na intermediação de contratos de vendas (ou transferências) de armamentos e equipamentos estadunidenses para os países da região; supervisiona as Cooperative Security Locations (bases militares compartilhadas); e, por fim, desempenha papel importante no sistema de formação educacional dos Estados Unidos para as forças armadas e policiais, bem como de civis na América Latina (a exemplo do Perry Center e do Western Hemisphere for Internacional Security Cooperation) e em parceria com agências estadunidenses. Entre elas estão a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), o FBI (a Polícia Federal americana) e a Agência Central de Inteligência (CIA).

Seguindo a indicação lançada pelo governo Joe Biden no Dia Internacional da Mulher, o Senado estadunidense confirmou, em 11 de agosto, a recém-promovida general Laura Richardson como a 32ª comandante do Comando Sul. Laura se tornou a segunda mulher a ocupar esse cargo nos comandos geográficos, e a primeira, no Comando Sul. 

Troca de gênero no comando não significa mudança de política

Nesse contexto, a troca de comando foi saudada. A indicação da general no governo Biden faz parte das promessas de campanha do então candidato à presidência que defendia mais cargos de liderança para mulheres. Essa é apenas uma das estratégias preconizadas por grupos sociais que defendiam agendas progressistas por parte do Partido Democrata.

A ex-embaixadora dos EUA no Brasil e no Paraguai Liliana Ayalde afirmou que a nomeação de Richardson é “histórica”, porque incentiva os círculos militares latino-americanos a terem mulheres na liderança em suas Forças Armadas e de segurança.

Mas, afinal, o que nós, latino-americanos, podemos esperar da gestão de Richardson? O que tudo indica é que, mais do que trazer mudanças significativas, essa troca fará, na verdade, parte da estratégia de atuação “histórica” dos EUA e, especificamente, do Comando Sul.

Seguindo o protocolo oficial de requisitos de nomeações para este cargo, a general Richardson, além de ter sido comandante do Exército Norte dos EUA, vice-chefe do Estado-Maior para Comunicações da Sede da Força Internacional de Assistência à Segurança em apoio à Operação Liberdade Duradoura no Afeganistão, serviu em várias designações, incluindo Coreia do Sul, Fort Campbell (Kentucky) e Fort Leavenworth (Kansas).

A nova comandante também já trabalhou na Casa Branca (foi assessora militar do vice-presidente Al Gore) e no Capitólio (foi chefe de ligação legislativa do Exército para o Congresso).

Com ampla experiência, seja no comando de operações, seja em meio à elite política, seu perfil não difere do de seus antecessores que passaram por posições como essas antes de assumirem o cargo de chefia no Comando. Em sua sabatina no Senado, a general Richardson afirmou o compromisso que terá com as diretrizes do Comando Sul: “Estou extremamente honrada por ter a oportunidade de promover nossos interesses nacionais vitais na região”.

Os referidos interesses “nacionais vitais” são elaborados com base nos documentos estratégicos de política internacional estadunidense, como The National Security Strategy of the United States of America, The National Defense Strategy of the United States of America, The National Military Strategy of the United States of America, e nas informações e análises fornecidas por agências nacionais, como a CIA e os Departamento de Justiça e da Defesa.

Nessa sabatina, foi evidente que a chefia da general não vai alterar significativamente o modus operandi do Comando Sul. É provável que a instituição militar mantenha suas prioridades, percepção de ameaças e linhas de ação estabelecidas nos últimos anos. As falas da general incluíram as ações de combate ao “narcotráfico” e a manutenção da prisão de Guantánamo, em Cuba.

Seguindo os discursos de seu antecessor, general Craig Faller, e o conteúdo das últimas edições dos documentos acima citados, a comandante Richardson reafirmou que as principais ameaças à região latino-americana continuam sendo a “influência corrupta e corrosiva da China, as intenções malignas da Rússia e […] as ações violentas das organizações criminosas transnacionais”. Nesse contexto, a comandante enfatizou que sua prioridade será o fortalecimento de “parcerias” com os países latinos.

Assim, se confirmada, eu vejo o sucesso do Comando do Sul sendo determinado por três prioridades que se apoiam mutuamente: (1) construção de resiliência regional, (2) aumento da integração e interoperabilidade e (3) manutenção do parceiro de escolha na região. A criação de resiliência regional irá ser uma importante peça para a contenção de todas as ameaças, inclusive a influência corrosiva da China, Rússia e organizações criminosas transnacionais.

Tudo indica que o Comando Sul manterá suas conversas de fortalecimento de “laços” com os países latinos e, da mesma forma, intensificará estratégias de criação e de manutenção de consenso. Segundo Richardson, “[…] os Estados Unidos podem aumentar a integração e a interoperabilidade com os nossos parceiros em todos os domínios, com base em maior participação em exercícios multilaterais, aumento de oportunidades de educação profissional militar e maior integração de gênero”. 

Em específico, a nova comandante do Comando Sul afirma que, em sua gestão, irá: a) manter ações diplomáticas e coordenadas de segurança com os países latino-americanos; b) atuar em conjunto com outras agências estadunidenses (a exemplo do Departamento de Estado, Tesouro e USAID); c) apoiar o treinamento e a cooperação com as forças policiais latino-americanas; e d) manter treinamento e educação militar por meio de escolas, como o Instituto de Cooperação em Segurança do Hemisfério Ocidental (WHINSEC, na sigla em inglês), o qual é considerado pela general uma instituição que não apenas representa os interesses e os objetivos do Comando Sul, como também reflete e promove “interesses de segurança nacional dos Estados Unidos no hemisfério ocidental”.

Questões de gênero e de assédio ficam em segundo plano

Se as diretrizes de atuação permanecem as mesmas com a nova liderança, a expectativa era de que, com a primeira mulher na chefia do Comando Sul, pautas relacionadas a gênero recebessem prioridade. Afinal, a indicação da general pelo governo Biden está inserida na promoção de agendas progressistas, incluindo aquelas ligadas a gênero. A pauta está presente desde sua campanha presidencial e também é parte de um movimento amplo no Partido Democrata (a exemplo do grupo de congressistas democratas The Squad, liderado por Alexandria Ocásio-Cortez e proponente de um Congresso representativo em termos de raça, classe e gênero).

Não parece ser esse o caso. As pautas relacionadas a gênero não fazem parte de seu discurso e não parecem ser prioridade durante seu comando. Quando questionada sobre prevenção e respostas a assédio sexual dentro do Comando Sul, a comandante argumentou que ainda não tinha se aprofundado nos procedimentos relativos a esses casos, mas que fará sua leitura e revisão no futuro. Como bem argumentava Simone de Beauvoir, o patriarcado não seria tão efetivo se não tivesse cúmplices entre os/as oprimidos/as.

O que se observa é que a “parceria” com países latino-americanos, então muito enfatizada nos discursos do Comando Sul, é uma estratégia de internacionalização dos interesses estadunidenses – mais especificamente, dos interesses de uma classe dirigente, masculina e militar estadunidense.

Em nenhum momento da sabatina, a comandante ou os senadores mencionaram algum tipo de diálogo com as nações “amigas”. O objetivo é garantir o “interesse nacional vital dos EUA”, a ferramenta usada para executar essa estratégia é o Comando Sul, e o local de execução é a América Latina.

Assim, mantendo estratégias de internacionalização e de universalização de interesses que são privados a uma classe dominante estadunidense, mas que são apresentados como universais, ou públicos (a exemplo da “ameaça” chinesa na América Latina), a nova comandante do Comando Sul não deve representar uma mudança “histórica”.

Nada melhor do que se apresentar como uma instituição que simboliza pautas progressistas (a exemplo do gênero, no caso da primeira mulher a comandar a mais importante instituição militar estadunidense de atuação na América Latina), mas manter intactos objetivos e estratégias de atuação que preconizam estruturas conservadoras, elitistas e masculinas. A escolha de Richardson, ao que tudo indica, não fez mais do que legitimar essa agenda e, portanto, legitimar a manutenção hegemônica estadunidense na América Latina.

Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Faz parte do INCT-INEU, IMDH e GEPPIC. Contato: [email protected].

Luciana Wietchikoski é pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Faz parte do GEPPIC e do Grupo de Estudos em Segurança e Política Internacional da UFRGS. Contato: [email protected].