Opinião

Artigo | Chegou a hora do frenteamplismo

"Precisamos uma frente ampla que circunscreva de vez a nossa democracia dentro dos marcos civilizatórios universais"

Brasil de Fato | Santa Maria (RS) |
"A derrota de Bolsonaro teria de ser o impeachment, a cassação da chapa ou da candidatura, com o amparo de amplos segmentos da população indo às ruas, da direita liberal à esquerda democrática" - Giorgia Prates

Vez por outra a história política precisa de uma frente ampla (vou usar este termo pela absoluta falta de outro melhor), que reúna amplos setores da sociedade e da vida política organizada, e que una aqueles que sob outras condições estariam em lados opostos, para resistir e combater experiências nefastas à democracia e à civilização. 

Assim como o combate a Hitler e Mussolini reuniu Stalin e Churchill na mesma frente durante a Segunda Guerra, e estiveram no mesmo palanque das Diretas Já, Lula, Brizola, FHC, Tancredo e Quércia, o momento atual também impõe a necessidade de uma frente ampla contra Bolsonaro e seu projeto neofascista.

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Não basta supor que ele está fraco, que é um fascista com pés de barro, que tem parcas chances de realmente dar um golpe, e que pode ser abatido pela via eleitoral. Não, o fascismo não pode e não deve ser derrotado eleitoralmente. A eleição é uma instituição da democracia, e ele é a negação da democracia, então não é a eleição o lugar da sua derrota ou superação. 

Em tese, plataformas como as nazistas ou fascistas sequer deveriam participar de pleitos eleitorais, e derrotá-las pela via eleitoral é legitimá-las e tomá-las como aceitáveis na disputa; é admitir que, se ao invés de derrotados fossem eleitos, candidatos nazifascistas teriam o direito de impor seu projeto à Nação.

A derrota de Bolsonaro teria de ser o impeachment, a cassação da chapa ou da candidatura, com o amparo de amplos segmentos da população indo às ruas, da direita liberal à esquerda democrática. O “erro Bolsonaro” tem de ser corrigido pelos remédios institucionais que a democracia dispõe para afastar aqueles que se voltam contra ela, não pela via eleitoral. E isto tem que ser feito com o apoio de todos aqueles que se dizem democráticos e civilizados, independente dos planos eleitorais de cada um e do quanto estejam programaticamente afastados entre si.

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Então, uma frente ampla antifascista, neste momento, não pode nem deve ser um projeto eleitoral, e sim um movimento pré-eleitoral que estabeleça os limites do que é e do que não é legítimo de ser servido à mesa da democracia no processo eleitoral seguinte.

Além disso, o frenteamplismo é importante não só por razões práticas, para ampliar a frente de resistência ao fascismo e garantir a sua derrota, mas também por razões simbólicas e políticas de longo prazo.

Um, a organização de frentes amplas são momentos em que se estabelecem consensos mínimos entre os agentes políticos sobre os limites civilizatórios e democráticos que não podem ser ultrapassados na luta política, evitando, por um tempo, retrocessos autoritários.

Dois, independente da história de cada um que faça parte destas frentes, a sua participação torna-o signatário destes consensos, e pode assegurar seu compromisso com os limites ali construídos e defendidos.

Três, uma frente ampla representa a tolerância e a capacidade de entendimento entre os agentes políticos em torno de temas convergentes, algo que tem caráter pedagógico e deve estar na base das convenções democráticas, sem as quais não pode haver debate político sério e construtivo, só a força e a barbárie.

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Quatro, representa, ainda, a capacidade de aglutinação de um amplo espectro político sempre que um marco civilizatório e democrático for ultrapassado.

Cinco, mostra que há uma diferença considerável entre aquilo que são as legítimas disputas entre programas de governo numa democracia, e o combate a projetos de ruptura democrática e civilizacional.

E seis, a frente ampla simboliza exatamente a antítese do fascismo, que prega a aniquilação dos adversários, vistos como inimigos, e por isso tende a se impor pela força, repressão e morte. Assim, a busca de entendimento dos frenteamplistas em torno de limites civilizatórios e democráticos representa uma forma de atuação que desenha no espectro político uma linha divisória entre os movimentos de extrema direita e todos os demais.

Bem, apesar de entender que este é o momento de se ter uma frente ampla contra o governo Bolsonaro, vejo poucas chances dela se concretizar, a meu ver por uma série de equívocos que vem sendo cometidos por parte daqueles que se opõem ao bolsonarismo.

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Primeiro, há uma tendência cada vez maior, inclusive alimentada pelas redes sociais e seus algoritmos, dos agentes políticos e formadores de opinião falarem apenas para as suas bolhas, com discursos velhos e recheados de sectarismo. Sem renovar os discursos e ampliar seu alcance, não há como romper os guetos políticos e reunir forças amplas em defesa da democracia e dos marcos civilizatórios básicos. 

Segundo, do lugar de onde observo e para quem eu falo, vejo uma dificuldade histórica de uma parte da esquerda de reconhecer o limite que divide a extrema direita fascista da direita liberal e até mesmo de correntes de centro, bem como em reconhecer o que isto representa politicamente, como o limite entre uma democracia civilizada e um absolutismo bárbaro, ou entre uma economia de mercado regulada e um anarcocapitalismo selvagem. 

E terceiro, na medida em que o tempo passa e os processos contra Bolsonaro não avançam nem no Congresso nem na Justiça, tende a ganhar força a agenda eleitoral em detrimento da agenda de resistência ao governo, o que provoca mais tendência à divisão que à aglutinação de forças em uma frente realmente ampliada.

Apesar de constatar a resistência e a superação do atual governo sendo empurradas cada vez mais para o processo eleitoral, não perco a esperança de ver se formar no Brasil uma frente realmente ampla, que circunscreva de vez a nossa democracia dentro dos marcos civilizatórios universais, sob pena e risco de termos que defendê-la e reiterá-la a cada nova eleição.

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko