A mensagem do secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, durante a Semana Mundial da Alimentação em outubro de 2020, ressaltou os riscos e os grandes impactos do sistema alimentar globalizado. Destacou também a fragilidade da distribuição de alimentos escancarada pela pandemia e, como estratégia de solução, afirmou a importância da Cúpula dos Sistemas Alimentares de 2021 das Nações Unidas.
A cúpula é uma atividade da Década de Ação das Nações Unidas, visto o tempo restante para os governos cumprirem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030. Tal agenda é um documento no qual em seu plano de ação indica 17 objetivos que promovem a erradicação da pobreza e a vida digna para todos e todas dentro dos limites do planeta Terra.
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São metas para que os países, em ressonância com suas prioridades, atuem num propósito de uma parceria global para que busquemos equilíbrio social, econômico e ambiental.
Segundo Guterres, “precisamos de engajamento e ação global para sistemas alimentares inclusivos e sustentáveis". Um dos principais motivos pelos quais “não temos conseguido permanecer dentro dos limites ecológicos do nosso planeta” são os impactos do atual modelo de sistema agroalimentar industrial globalizado.
Temos perdido saberes e sabores, seguindo dietas baseadas em poucas variedades de cultivos que se assemelham em todo o mundo.
Uma comida cada vez mais padronizada, baseada no consumo excessivo de arroz, trigo, milho e batata, que estão entre as 12 espécies que juntas representam 80% da nossa alimentação. Estimulando uma agricultura de monocultura e em sistema extensivo altamente dependente de insumos externos tal como agrotóxicos, sementes industriais e transgênicas, fertilizantes químicos e maquinário pesado. Uma alimentação que viaja longas distâncias até chegar aos locais de consumo, ou seja, até a sua mesa.
Essas práticas de manejo ainda causam graves consequências, como envenenamento das escassas fontes de água potável, salinização e erosão do solo, perda da biodiversidade e a grande emissão de gases de efeito estufa. Temos sofrido alterações climáticas consideráveis ao longo dos anos, acarretando em grandes catástrofes ambientais, como longos períodos de seca, com impacto direto na agricultura.
O melhoramento das variedades realizado ao longo de séculos pela experimentação dos agricultores a partir de práticas tradicionais e agroecológicas, como a seleção de sementes têm sido deixadas de lado em favor de novas técnicas e insumos industriais que ameaçam a soberania alimentar pela redução de espécies e variedades de plantas, bem como de raças animais, como ressalta a pesquisadora Esther Vivas Esteve, no livro "O negócio da comida: Quem controla nossa alimentação?", de 2017.
Mas a grande questão é como em um planeta com tanta abundância de alimentos, onde o desperdício alcança números estratosféricos, há tantas pessoas que não têm o que comer?
Segundo Josué de Castro em seu livro “Geografia da Fome”, a fome é “fabricada pelos homens contra os homens”. Sua posição de classe decide o que e se você vai comer. Há também pessoas obesas, resultado do modelo de oferta de alimentação fast food e pelo fato dos alimentos frescos serem financeiramente menos acessíveis.
É um sistema complexo, com padrão de consumo globalizado, que defende e é financiado para servir interesses corporativos o tempo inteiro. O processo denominado “revolução verde” prometeu modernizar o campo e acabar com a fome e continua repetindo as mesmas promessas e nos deixando à mercê de uma agricultura privatizada, em mãos de um grupo reduzido de corporações.
Cerca de 84% do mercado mundial de agrotóxicos é controlado por 4 empresas: Bayer-Monsanto, com sede na Alemanha, e 27,4% do mercado; Syngenta-ChemChina, com sede na Suíça/China, e 26,9% do mercado; Dow-Dupont (Corteva), com sede nos EUA, e 16,8% do mercado e Basf, com sede na Alemanha, e 12,9% do mercado. Essas mesmas empresas controlam o negócio das sementes e fertilizantes químicos. É muito poder em poucas mãos.
Dez multinacionais controlam o mercado mundial de alimentos, Nestlé, PepsiCo, Unilever, Mondelez, Coca-Cola, Mars, Danone, Associated British Foods (ABF), General Mills e Kellogg ‘s, encabeçando mundialmente o volume de vendas do setor. No Brasil dentre as maiores varejistas da rede de supermercados e hipermercados estão: Carrefour, Grupo Pão de Açúcar e Grupo Big (ex-Walmart). O setor é responsável por 15% das vendas totais de varejo.
Essas corporações impõem um modelo de agricultura e alimentação que 'engolem' o campesinato.
O objetivo é controlar toda a cadeia da matéria prima até a mesa, reduzir custos de produção e aumentar o preço final dos alimentos, para obterem mais lucro. Ao agricultor é pago o menor valor possível, determinam como deve ser a produção, como se deve produzir, em quais condições e onde deve ser vendido.
A Cúpula
Em tempos de mudança climática, uma estratégia do sistema alimentar globalizado é o uso de bandeiras ecológicas como estratégia de marketing. Apropriam-se, por exemplo, de sistemas como os orgânicos e implementam a proposta esvaziando-a de qualquer pretensão de mudança social, com objetivo de neutralizar as sugestões. É uma agricultura ecológica à serviço do capital, com alimentos viajantes e carência de direitos trabalhistas, como também destaca Esther Vivas Esteve.
Esse processo de apropriação é eminente e ocorre também na Cúpula dos Sistemas Alimentares 2021, que aconteceu entre os últimos dias 23 e 24 de setembro, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.
De acordo com a Via Campesina (2020), a organização tem se tornado mais um espaço de influência de lobbies corporativos defendendo os interesses da agroindústria, colocando em risco a soberania alimentar e o futuro do planeta. A cúpula não foi pensada para a participação social, que poderia ser um somatório de vozes de camponeses(as), organizações de povos indígenas, quilombolas, movimentos sociais rurais, trabalhadores(as) agrícolas, bem como os consumidores da cidade, participando na formulação de políticas alimentares.
A convocação da Cúpula dos Sistemas Alimentares 2021 foi anunciada pelo Secretário geral da ONU em resposta a um pedido formulado pelo Fórum Econômico Mundial, que é uma organização setorial privada que representa os interesses corporativos globais.
Teve também o apoio crucial de alguns Estados nacionais “mais desenvolvidos”. Se mostra à serviço de uma elite que no uso de seus braços corporativos transnacionais continuam a acumular capital e destruir o planeta, sustentados na falácia da qual se veste de combate à fome.
Tais atitudes só demonstram o quanto os sistemas alimentares continuarão a ser definidos de forma facilitada a captura corporativa.
Se o objetivo é uma transformação profunda do sistema agroalimentar, como apresenta o discurso de Guterres, a Cúpula dos Sistemas Alimentares 2021 das Nações Unidas deve ser inclusiva e representativa.
Pautar a produção local de alimentos, que sejam biodiversos e agroecológicos. Proporcionando mudanças sistêmicas na proteção ao meio ambiente e implementação de políticas públicas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas, reconhecendo os perigos da ineficiência da agricultura industrial e fortalecendo a produção agroecológica e camponesa.
É necessário promover a autonomia, desenvolvimento e acesso a tecnologias sociais populares para uma produção livre de agrotóxicos, de biotecnologias (transgênicos e outras) excludentes para o acesso à uma alimentação de qualidade, associando a processos organizativos locais, para a produção e a comercialização de alimentos e envolvendo agricultores, trabalhadores consumidores, do campo e da cidade, assegurados por políticas públicas.
Na construção da soberania alimentar é preciso implementar ações concretas para extinguir a fome no mundo, conservar a vida das matas, das águas e a qualidade de vida das pessoas.
*São integrantes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse