Judiciário

Tribunal reverte demissão de trabalhadora por justa causa baseado na "perspectiva de gênero"

Decisão reconhece desigualdade entre homens e mulheres e aponta "inconvencionalidade" do artigo 482 da CLT

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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TRT4 tem jurisdição nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, com turmas em Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC) e Curitiba (PR) - Divulgação

Uma decisão da 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) chamou atenção no último dia 29 por aplicar a "perspectiva de gênero" ao reverter uma demissão por justa causa de uma trabalhadora de uma empresa de comércio de cosméticos no Rio Grande do Sul. 

Ao reconhecer a desigualdade histórica entre homens e mulheres, os juízes de 2ª instância decidiram pela incompatibilidade do exercício do "poder disciplinar" do empregador, previsto no artigo 482 da CLT, com o regime democrático do Estado de Direito.

A empresa foi condenada a pagar danos morais no valor de R$ 50 mil, além de garantir os direitos referentes a uma demissão sem justa causa.

A alegação

O processo foi aberto em 2018 e chegou a segunda instância em maio deste ano. 

A empresa alegou que a funcionária estaria "fraudando o sistema e passando brindes que seriam dados às vendedoras como se fossem produtos vendidos, o que aumentaria o índice da meta, e, portanto, a comissão."

A trabalhadora teria "praticado ato de improbidade ao se utilizar de cadastro de representantes para lançar compras a fim de atingir a meta necessária para o recebimento das premiações" – o que justificaria a demissão por justa causa, segundo a decisão em 1º grau.

Após reunir incongruências no depoimentos de testemunhas, a 8ª Turma interpretou que não havia gravidade que justificasse ruptura da relação de trabalho por justa causa.

"Se assim fosse, a demandada deveria tê-la aplicado também aos empregados responsáveis pela liberação dos produtos no setor Espaço Representante, o que não ocorreu", diz o texto.

"Está em análise um ato unilateral produzido pelo empregador em relação a uma mulher tratada de forma diferenciada a outras pessoas, de modo que o caso demanda imprimir uma perspectiva de gênero", aponta a decisão.

Discriminação

O texto cita os artigos 1º e 6º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em 1994 em Belém (PA), que definem o que é violência contra a mulher, e a abrangência de seus direitos.

"O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros, o direito da mulher a não ser discriminada de nenhuma forma. Elementos constantes dos autos que ensejam a reforma da sentença, como medida adequada ao combate a todas as formas de discriminação contra a mulher", escreveu o relator em 2ª instância, desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso.

"O direito a condições justas e dignas de trabalho não contempla a possibilidade de imposição de desequilíbrio ainda maior nessa relação assimétrica [entre homens e mulheres], (...) razão pela qual deixa-se de aplicar o art. 482 da CLT na circunstância do caso concreto por inconvencionalidade."

A decisão cita artigos das juristas argentinas Graciela Medina e Graciela Angriman para embasar sua leitura sobre a perspectiva de gênero.

O relatório foi aprovado após voto favorável da desembargadora Brígida Joaquina Charão Barcelos e divergência de Luciane Cardoso Barzotto.

Edição: Anelize Moreira