A qualquer momento pode sair a decisão da juíza Gina Fonseca Corrêa, da 1ª Vara da Comarca de Cajamar (SP), que definirá o futuro de 105 famílias. Elas vivem desde 2019 na Ocupação dos Queixadas, na região metropolitana de São Paulo. O pedido de reintegração de posse foi impetrado pelos irmãos Aguinaldo e Vera Lúcia Zanotti, que afirmam ser proprietários da área.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por sua vez, entende que há dúvidas sobre a real validade jurídica da propriedade alegada. Além disso, ainda que o terreno seja considerado propriedade de direito dos dois irmãos, apontam os defensores públicos, a reintegração de posse não deve ocorrer, por razões previstas em lei, relacionadas com o dever constitucional de emprestar função social à terra, ao invés de deixá-la devoluta.
Conforme explica o defensor público Rafael Negreiros, que atua em defesa do direito à moradia das famílias ocupantes, a família Zanotti "tem uma propriedade registral", mas "fortes indícios" demonstram que o terreno "há décadas não cumpre a função social".
Ou não cumpria, já que atualmente, cumpre, como espaço de moradia para mais de 100 famílias ocupantes, como mostram as imagens abaixo.
Para o Direito, propriedade e posse são coisas diferentes. A primeira se refere a quem detém o título de propriedade. Já a posse diz respeito à conduta, ao uso, a algo que se exerce, na prática, naquela área.
A alegação feita na ação judicial que pede o despejo é de que o terreno teria sido comprado por Ernesto Zanotti, pai dos irmãos que se reivindicam donos, em 1988.
No processo, a família anexou um contrato de compra e venda e um inventário, no qual Ernesto Zanotti passa o bem aos filhos. A Defesa aponta, no entanto, que o documento de compra nunca foi registrado em um Cartório de Registro de Imóveis. O título da propriedade está no nome de quem consta como vendedor no contrato da década de 1980: João de Morais Tavares, já falecido.
Para, então, garantirem-se como donos da área, os irmãos ingressaram com uma ação de usucapião, alegando - além de possuírem o contrato de gaveta e, assim, a propriedade, ainda que precária, da terra - estarem há anos na condição de possuidores da área, até que sua propriedade tivesse sido "invadida" pela centena de famílias.
O problema é que, se tinham direito à posse, o fato é que não a efetivaram. É o que mostram as imagens de satélite disponíveis na plataforma Google Earth. O Brasil de Fato analisou as fotos e constatou que a área está abandonada ao menos há 19 anos - todo o período histórico disponível no arquivo de imagens.
Nas fotos abaixo, é possível ver como o terreno está praticamente igual na data de 2002 e na de 2018, sem qualquer construção, atividade agrícola ou animal. A terceira imagem é de 2021, já com a Ocupação dos Queixadas, que se organiza junto com o Movimento Luta Popular.
A reportagem tentou contato com os Vera Zanotti, mas não teve respostas.
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A Constituição, a propriedade da terra e a manobra da prefeitura de Cajamar
A Constituição Federal determina que o direito à propriedade de terra não é absoluto, mas condicionado ao cumprimento de sua função social. A família Zanotti entrou, em 2016, com um pedido de usucapião sobre o terreno. Usucapião é uma ação para casos em que se ocupa um imóvel por mais de cinco anos sem que alguém tenha questionado essa ocupação na Justiça. Se reconhecido que o posseiro está dando uso social ao imóvel, o juízo passa a propriedade para o seu nome. No caso da família Zanotti, a ação de usucapião está ainda tramitando.
Há dois anos, quando a Ocupação dos Queixadas surgiu, a região estava categorizada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), ou seja, área demarcada para ser destinada à habitação para a população de baixa renda.
Sob gestão de Danilo Joan (PSD), no entanto, a Prefeitura e a Câmara de Vereadores de Cajamar aprovaram, no mesmo ano em que as famílias ocuparam o terreno, uma mudança que, de acordo com o Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo, é pouco frequente na legislação urbanística brasileira. No plano de Macrozoneamento de Cajamar, justamente essa área foi retirada de sua condição de ZEIS.
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Demonstrando estranhamento com a alteração, a Defensoria aponta que além dessa "área urbanizada consolidada" ter perdido o status de destino à moradia social, o poder municipal passou a considerar como ZEIS uma outra região, "de floresta nativa e de pouca infraestrutura consolidada".
A análise consta num pedido de regularização fundiária (Reurb-S) da Ocupação dos Queixadas, feito pela Defensoria Pública e entregue à Prefeitura de Cajamar em maio deste ano. No documento, o órgão discorre sobre a viabilidade técnica e jurídica desse que argumenta ser o melhor caminho para resolver o impasse.
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Consolidação da Ocupação dos Queixadas
No fim de agosto deste ano, o município de Cajamar respondeu dizendo que o pedido "não merece" ser aceito. São dois os principais argumentos na posição da Prefeitura - assinada pela gestora do Departamento de Habitação, Camila Barreto; e o secretário municipal de Mobilidade e Desenvolvimento Urbano, Leandro Arantes.
O primeiro deles é que, para a Prefeitura de Cajamar, a ocupação não está consolidada. Como exemplo, diz que as construções são precárias e que não constam ali equipamentos públicos.
Não é o que apontam os moradores da Ocupação dos Queixadas. "A partir da nossa união e força coletiva, conseguimos garantir no nosso bairro o acesso aos direitos básicos que são negados para nós", descreve panfleto feito por moradores da Ocupação dos Queixadas como parte da mobilização contra o despejo.
Em seguida, o texto elenca a "Biblioteca Yara Gabrielly, Horta Comunitária Bisa Cecília; Espaço de aulas de reforço e alfabetização para jovens e adultos; Brinquedoteca Queixadinhas", além da construção do barracão coletivo, que está sendo feito em parceria com um projeto de extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Em petição entregue à Justiça pelos advogados da comunidade no dia 23 de setembro, a defesa destaca que as casas são de madeira e alvenaria, com "cômodos onde encontram-se todos os pertences e equipamentos eletro-eletrônicos" das pessoas, indicando uma "perspectiva de permanência e não de 'local de passagem', totalmente integrada às dinâmicas sociais, laborais, familiares" de quem ali vive.
Em relação aos equipamentos públicos, a defesa dos Queixadas destaca que as famílias estão cadastradas e são acompanhadas sistematicamente pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e que as crianças da comunidade (são 92) estão matriculadas nas duas escolas públicas municipais do bairro.
"A gente planta, a gente colhe, aqui a gente faz nossas festas, nossas reuniões, nossas assembleias. Aqui é nosso pedacinho de chão", resume a moradora Tainá Venâncio.
O segundo argumento dado pela Prefeitura de Cajamar para negar o pedido de regularização é o de que existem ações de usucapião e de reintegração de posse em andamento, e que seria uma despesa muito alta começar um procedimento na área antes do término do litígio.
Definindo a posição da Prefeitura como "cômoda", Negreiros alerta que esse tipo de postura "conduz a uma inércia das administrações municipais, que não exercem o dever de regular a ocupação do solo urbano".
Mais do que simplesmente questionável, o defensor destaca que "a posição do município é contrária ao entendimento da Lei 13.465 que dispõe que o município tem que ser o mediador dos conflitos fundiários, se esforçando ao máximo para que haja uma solução pacífica".
O Brasil de Fato tentou, com seis ligações telefônicas e o envio de quatro e-mails ao longo de uma semana, contato com a Prefeitura de Cajamar - inclusive para saber quais medidas serão tomadas caso haja um despejo de famílias cujo problema habitacional não está sendo resolvido pelo poder municipal. Mas não obteve resposta.
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Despejo na pandemia
A suspensão de despejos durante a pandemia de Coronavírus tem tido idas e vindas ao longo de toda a pandemia, nas diferentes esferas de poder. Tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto o governador de São Paulo, João Dória, vetaram projetos de lei que visavam resguardar o direito a ter um teto durante a maior crise sanitária do século.
Nessa segunda-feira (27), o Congresso derrubou o veto presidencial e a suspensão de despejos passará a vigorar até o dia 31 de dezembro. Essa medida se soma a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em junho que proibiu - por seis meses ou até que perdure a pandemia - as remoções forçadas no Brasil.
O promotor da ação da Ocupação dos Queixadas pede que a reintegração de posse seja feita, em caráter de urgência, no dia 10 de dezembro.
Edição: Vinícius Segalla