Logo após o lançamento do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em agosto, nenhum presidente dos dez países mais populosos da América do Sul falou mais sobre a emergência climática no twitter do que o colombiano Iván Duque. O Brasil de Fato conversou com cientistas locais para entender se as palavras do presidente da Colômbia também se convertem em ações e políticas públicas.
O cenário do Relatório do IPCC
O relatório completo do IPCC, com quase 3 mil páginas em sua versão completa, condensa o trabalho de milhares de cientistas e mostra um cenário preocupante: ações imediatas e de larga escala para reduzir a emissão de gases do efeito estufa são necessárias para tentar controlar o aquecimento global.
Além disso, a poluição gerada pela atividade humana já criou efeitos irreversíveis e sem precedentes. A concentração de dióxido de carbono é a mais alta em ao menos 2 milhões de anos e o aumento do nível do mar avança no ritmo mais rápido se considerarmos, no mínimo, 3 mil anos.
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O IPCC produz relatórios sobre as mudanças climáticas desde 1990, mas uma das novidades de sua mais recente versão são previsões sobre como as mudanças na natureza afetarão diferentes partes do mundo.
O aquecimento terrestre pode significar que áreas de solo congelado no passado poderão ser transformadas em campos de plantação, como em alguns locais da Rússia, mas também significa que outros locais mais quentes e mais frágeis serão afetados de maneira mais drástica do que pode parecer quando se fala em um aquecimento de 1,5°C. Este é o caso de boa parte da América Central e do Sul.
De acordo com o IPCC, as temperaturas médias da região muito provavelmente aumentarão em um ritmo maior do que a média global, o que também trará aumento de ondas de calor. Há, ainda, a previsão de que as secas aumentem em boa parte do continente, fenômenos que Brasil e Chile já enfrentam em grandes proporções.
Apesar do cenário preocupante para a região, seus líderes políticos eleitos pouco falam sobre o assunto. A reportagem do Brasil de Fato acompanhou o Twitter dos presidentes, vice-presidentes, presidentes do Legislativo e ministros da Agricultura e Meio Ambiente dos 10 países mais populosos da América do Sul para contabilizar menções a palavras como “mudança climática” e o próprio relatório do IPCC. O período selecionado foi de um mês após a publicação do relatório do IPCC, de 9 de agosto a 9 de setembro.
Nesse ínterim, entre os mais altos mandatários, a voz mais ativa sobre mudança climática na rede foi a do colombiano Iván Duque. Além dele, entre presidentes, apenas Nicolás Maduro abordou o assunto.
Quem é Iván Duque?
O advogado Iván Duque Márquez é presidente da Colômbia desde agosto de 2018. É filho de Iván Duque Escobar, que foi governador de Antioquia, o departamento mais populoso do país, na década de 1980.
“É um presidente que representa a direita e a ultradireita deste país. É um presidente que pertence a um partido que se chama Partido do Centro Democrático, criado e dirigido por Álvaro Uribe, que é ex-presidente da Colômbia”, avalia Francisco Cortés Rodas, professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Antioquia.
Durante o governo de Duque, a Colômbia atravessou duas greves nacionais, em 2019 e 2021. Na mobilização mais recente, ao menos 68 pessoas morreram e mais de mil ficaram feridas, afirma a ONG Human Rights Watch. Foram registrados abusos policiais, como violência sexual e estupro, contra manifestantes, com 419 pessoas desapareceram, ainda de acordo com a ONG.
Para Rodas, o governo de Duque é “desastroso em muitos pontos pontos de vista” e ele é o presidente mais impopular da história recente da Colômbia. Não há reeleição para o cargo mais importante do Executivo no país, mas Duque chega para as próximas eleições presidenciais, previstas para maio de 2022, reprovado por 75% da população.
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Questionado internamente, Duque busca se apresentar como um líder propositivo da agenda ambiental na arena internacional. O presidente colombiano defendeu na Assembleia Geral da ONU, que ocorreu esta semana, que ações imediatas são necessárias para enfrentar as mudanças climáticas.
Ele marcou presença na Cúpula do Clima, liderada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, e também na Cúpula Latino-Americana sobre Mudanças Climáticas, dirigida pelo presidente argentino Alberto Fernández.
“Chegaremos a Glasgow na COP26 com o compromisso de reduzir nossas emissões de gases de efeito estufa em 51% até 2030 e estamos a caminho de alcançar a neutralidade de carbono até 2050”, disse Duque na Assembleia da ONU na terça-feira (21), onde também defendeu que o Fundo Monetário Internacional (FMI) não considere investimentos ligados à ação climática no cálculo do déficit fiscal.
A realidade violenta e crua da Colômbia
Apesar do discurso preocupado com o meio ambiente na arena global, os dados sobre a realidade da Colômbia e os depoimentos de cientistas ouvidos pelo Brasil de Fato entram em conflito com o país que o presidente colombiano busca apresentar.
Dados compilados pela Fundação para a Conservação e o Desenvolvimento Sustentável (FCDS) mostram que o governo de Duque não produziu qualquer diminuição do desmatamento no país. Pelo contrário, os anos de 2018 e 2020 registraram os mais altos índices de perda de floresta primária na Amazônia desde o começo das medições, em 2002.
Para tentar frear a devastação, o governo colombiano lançou em abril de 2019 a “Operação Artemisa”: uma ofensiva militar composta por dezenas de batalhões do Exército para frear a derrubada de árvores. De acordo com a FCDS, a iniciativa não conseguiu diminuir o ritmo da destruição da Amazônia.
Por dois anos seguidos, a Colômbia foi o país mais perigoso do mundo para ativistas ambientais de acordo com levantamento da Global Witness. A ONG afirma que 65 líderes ambientais colombianos foram assassinados em 2020, maior número no continente, e que os povos indígenas são especialmente atingidos pelo contexto de violência.
Cientistas colombianos publicaram carta na revista Science em julho deste ano em que destacam as contradições do discurso de Duque.
No texto, os pesquisadores destacam que o presidente colombiano trabalha contra o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que, no fim, “protegeram involuntariamente vastas áreas de floresta usando-as como camuflagem”; lançou a operação militar Artemisa contra comunidades locais que desmatam ao mesmo tempo em que ignorava crimes ambientais de “atores bem conectados e politicamente influentes”; por fim, bloqueou a assinatura do Acordo de Escazú, um tratado latino-americano e caribenho para construir esforços multilaterais de preservação ambiental.
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Além disso, a Quinta Comissão da Câmara dos Representantes da Colômbia rejeitou em junho um projeto de lei que buscava proibir o fracking no país. Todos os membros do Centro Democrático, o partido de Duque, rejeitaram a proposta que buscava impedir o uso da técnica de extração de combustíveis do subsolo que é conhecida pelos seus riscos ambientais.
O relator especial da ONU para o meio ambiente e direitos humanos, David Boyd, defende a aprovação da lei anti-fracking e diz que a Colômbia deve se juntar a países que proíbem essa modalidade de exploração, como Costa Rica, Uruguai e França.
Um problema mais amplo
“Este é um país muito entregue ao neoliberalismo. É um país entregue à extração. Eu sei que a Colômbia tem regras, normativas de mudança climática, estratégias e um monte de coisas, mas na verdade são inoperantes. Na realidade, nos territórios, seguem atuando as mesmas forças”, afirma Paola Arias, professora da Universidade de Antioquia e uma das autoras do último relatório do IPCC.
A pesquisadora destaca que as políticas públicas e as negociações para enfrentar a mudança climática não estão acompanhando as evidências científicas, que mostram o efeito inegável da ação humana na natureza.
E quando o debate existe, a professora ressalta que muitas vezes é dominado por uma visão “tecnocrata” que acredita que basta substituir o petróleo pelo lítio, por exemplo, para seguir com o mesmo modelo econômico.
“Eu acredito que os grandes problemas que a humanidade enfrenta agora, seja a pandemia, a mudança climática, a desigualdade, a pobreza, etc, tudo tem uma causa estrutural e é o modelo econômico. Acredito que nunca vamos poder dizer que não existe conexão entre o modelo econômico e o que ele desenvolve, o que cria”, avalia Arias.
Melissa Ruiz Vásquez, cientista colombiana e doutoranda em Hidrologia, Biosfera e Interações Climáticas do Instituto Max Planck, também reafirma a desconexão entre as palavras de Iván Duque e suas políticas públicas.
“Digamos que fazer publicidade sobre o bom cuidado do meio ambiente não é suficiente. Uma coisa é dizer em palavras, outra coisa são essas palavras na realidade. Então eu acredito que falta direção e compromisso a respeito dessas, digamos, palavras bonitas sobre o cuidado com o meio ambiente. Falta mais proteção a esses ecossistemas, falta mais apoio às comunidade indígenas”, diz Vásquez ao Brasil de Fato.
A pesquisadora aponta para o papel dos Páramos, bioma presente em altas altitudes na Cordilheira dos Andes e rico em biodiversidade, que funciona como uma espécie de “fábrica de água”, mas está seriamente ameaçado pela mudança climática. Sem os páramos, a disponibilidade de água potável a milhões de pessoas, dentro e fora da Colômbia, poderá ser afetada.
O professor Francisco Rodas avalia que Duque é um político de duas caras, já que faz um discurso diferente de sua ação no acordo de paz com as FARC e também na área ambiental. A política é o campo das contradições, ressalta o analista, mas o caso colombiano apresenta muitas contradições.
“São duas facetas, duas caras. Mas, claro, isso é próprio de um político, somente os políticos do mundo ideal são os que têm apenas uma cara, mas esse presidente tem duas, e muita marcada uma contra a outra”, diz Rodas.
Edição: Arturo Hartmann