Rio Grande do Sul

Especial Religiões 

“A atual conjuntura sacrifica os corpos e territórios dos povos tradicionais”, frisa pastora

Cibele Kuss, pastora luterana, teóloga e feminista, fala ao BdFRS sobre fé, respeito ao diferente e situação do Brasil

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"As religiões e suas estruturas institucionais têm um papel importante na defesa da democracia e das políticas públicas", afirma Cibele - Arquivo Pessoal

Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19? O que líderes religiosos pensam destes tempos que estamos vivendo? Estas e outras respostas buscamos neste Especial Religiões, onde vamos entrevistar lideranças religiosas dos mais diferentes matizes, do espiritismo à matriz africana, da luterana ao budismo.

"A cada ano aumenta o fosso que separa a parcela mais rica e a parcela mais pobre da população. Um grupo seleto de pessoas bilionárias concentra a maior parte da riqueza nacional e global. A voz profética continua atual: 'Ai dos que ajuntam casas e mais casas, reúnem para si campos e mais campos, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!'", destaca o manifesto da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB

Escrito em 29 de março de 2019, um ano antes da pandemia chegar ao país, o texto traduz bem a realidade pela qual perpassa o país, especialmente nestes quase dois anos de pandemia. Para a pastora luterana, teóloga feminista Cibele Kuss, a atual conjuntura brasileira, representada pelos interesses das históricas oligarquias que controlam e exploram os recursos naturais e ancestrais, está sacrificando os corpos e territórios dos povos e comunidades tradicionais em nome do Deus Mercado.

“Qualquer silêncio nosso é testemunho cúmplice dos crimes atrozes que estão sendo cometidos pelo estado brasileiro”, afirma a pastora nesta entrevista ao Especial Religiões do Brasil de Fato RS.

Com uma base cristã, a doutrina luterana tem sua origem no movimento de reforma da Igreja no século XVI, baseada nos princípios de Martinho Lutero. As primeiras comunidades luteranas no Brasil datam de 1824, quando um grupo de imigrantes alemães evangélicos chegou a Nova Friburgo (RJ), em maio, e um outro aportou em São Leopoldo (RS), em julho do mesmo ano. De acordo com o site da Federação Luterana Mundial, estima-se que no mundo todo haja cerca de 77 milhões de pessoas que seguem a doutrina luterana. O Brasil, com 634.286 membros, é o país com o maior número de adeptos na América do Sul.

Cibele atuou no estado do Pará, em Belém, de 2000 a 2013, como pastora em paróquia luterana, onde também foi Ouvidora do Sistema de Segurança Pública do PA, por dois mandatos, representando a sociedade civil. Desde 2013, quando veio para Porto Alegre, está na função de secretária executiva da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN) e do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia.

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - A partir da experiência que você tem com sua comunidade religiosa, qual a avaliação da situação pela qual passa o país, no contexto social e político?

Pastora Cibele - Sou teóloga feminista e pastora luterana ordenada na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB. Atualmente integro a equipe da FLD-COMIN-CAPA (Fundação Luterana de Diacona - Conselho de Missão entre Povos Indígenas - Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia), na função de secretária executiva. Falo a partir de uma fundação privada de finalidade pública, que apoia e executa programas e projetos sociais nas áreas de diaconia e direitos, justiça socioambiental, justiça econômica e ajuda humanitária. 

Compartilho um documento oficial da igreja chamado Manifesto da IECLB – Nosso compromisso é o Evangelho, lançado em março de 2019, como uma decisão do XXXI Concílio da Igreja, realizado entre os dias 17 e 21 de outubro de 2018 na cidade de Curitiba (PR), como um manifesto da Igreja face ao grave momento nacional. Assim afirma o documento: “A cada ano aumenta o fosso que separa a parcela mais rica e a parcela mais pobre da população. Um grupo seleto de pessoas bilionárias concentra a maior parte da riqueza nacional e global. A voz profética continua atual: 'Ai dos que ajuntam casas e mais casas, reúnem para si campos e mais campos, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!' (Isaías 5.8).

Avalio que a atual conjuntura brasileira, representada pelos interesses das históricas oligarquias que controlam e exploram os recursos naturais e ancestrais, está sacrificando os corpos e territórios dos povos e comunidades tradicionais em nome do Deus Mercado. Qualquer silêncio nosso é testemunho cúmplice dos crimes atrozes que estão sendo cometidos pelo estado brasileiro. 


"Pregações fundamentalistas alicerçadas na teologia da prosperidade apresentam a meritocracia em oposição à graça de Deus" / Fabiana Reinholz

BdFRS - Costuma-se dizer que viver é um ato político, a religião também seria?

Pastora Cibele - Seguir os rastros de Jesus de Nazaré é uma vivência encarnada no contexto político, religioso, ambiental, cultural, econômico em que raça, gênero, religião, classe, idade e território desvelam as dores, os sofrimentos e também os caminhos de libertação e esperança. 

A história da encarnação de Deus em Cristo, nascido em meio à pobreza e à perseguição do estado romano, que o crucificou porque se opôs à política de violência impetrada no seu tempo, ensina ao povo cristão que a fé é compromisso com a afirmação dos direitos das mulheres, das crianças e adolescentes, migrantes, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+, povos e comunidades tradicionais. 

Para entender a religião, as religiões, é sempre necessária a hermenêutica. As teologias populares, a teologia feminista, negra, indígena, as teorias decoloniais são imprescindíveis para que a religião como ciência encontre e atualize seu lugar e sua função diante dos grandes desafios contemporâneos. Um desses é a ruptura democrática e a naturalização da violência.  

Muitas pessoas morreram por conta do negacionismo provocado por informações mentirosas, muitas delas fundamentadas com argumentos bíblicos.

BdFRS - Qual o papel da religião e da fé diante do que estamos vivendo?

Pastora Cibele - É uma pergunta perigosa e controversa. Acima de tudo, importante. Certamente, não é papel da religião e de pessoas religiosas e muito menos do estado declarar “Deus acima de todos” porque o Brasil é um país plural e há muitas expressões de fé e um conjunto significativo de religiões.

Entendo que as religiões e suas estruturas institucionais têm um papel importante na defesa da democracia e das políticas públicas. Manifestos, notas e posicionamentos confessionais, ecumênicos e inter-religiosos em que a fome, o feminicídio, o genocídio negro e indígena, o desemprego e a exploração dos recursos naturais são denunciados cumprem um papel humanitário e político fundamental no país. 


Da esq. para dir. Cigana Rose Winter, Monja Kokai, pastora Cibele e Lucas / Arquivo Pessoal

BdFRS - Qual a importância da espiritualidade na vida das pessoas?

Pastora Cibele - Para as pessoas que professam uma crença religiosa, a fé é um elemento que compõe a inteireza da vida na relação com um conjunto de outros elementos de igual relevância. A pergunta que precisamos fazer é: “a fé que eu professo promove e respeita a dignidade de outras pessoas, sem impor uma verdade e um julgamento?”. 

É uma pergunta que está no centro da vida das pessoas cristãs e suas comunidades, especialmente. São muitos os casos em que o cristianismo, a fé em Jesus Cristo e o nome de Deus são usados para destruir terreiros, casas de reza indígenas, ameaçar de morte mulheres feministas, assediar e intimidar mulheres teólogas, freiras, pastoras, reverendas em espaços de liderança e tomada de decisão. Essas situações transformam a espiritualidade em sistemas de poder teocrático-patriarcal.

É impressionante como a desinformação tem força para revoltar, emocionar e insuflar grupos a produzir violências, tornando-se esse tema um problema para a democracia.

BdFRS - Nesse mais de um ano de pandemia, o Brasil é o segundo país com o maior número de vítimas fatais. Apesar da  morte ser algo inerente à vida humana, como sua tradição religiosa lida com ela, em especial nesse momento? Há lições para tirar desta pandemia?

Pastora Cibele - Apesar de ser inerente não pode ser planejada de forma vil e intencional como estamos acompanhando na gestão da pandemia feita pelo estado brasileiro. Desde o início da pandemia, o governo do presidente Jair Bolsonaro minimizou a gravidade do coronavírus; atuou midiaticamente contra os protocolos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde/OMS; acusou governadores e prefeitos de agravar a crise econômica; recusou a oferta de vacinas feita pelos laboratórios e descreditou a vacina brasileira; incentivou o uso de medicamentos sem comprovação científica contra a covid-19; não utilizou recursos financeiros em campanhas de medidas protetivas nem de incentivo a ampla vacinação e pouco atuou para a contenção da disseminação do vírus e suas variantes. 

Portando, não agiu segundo sua responsabilidade para que mortes fossem evitadas. É um governo que incentiva a compra e o uso de armas, cujo presidente não usa máscara, não respeita o distanciamento e afirma que é idiota quem diz que precisa comprar feijão e “tem que todo mundo comprar fuzil”. 

O manifesto da IECLB afirma que "a fé e a esperança cristã nos comprometem a buscar um mundo com menos armas, com mais paz e mais vida" (Isaías 2.4).

BdFRS - Como a religião pode ser um caminho para a construção de uma sociedade mais justa e um planeta mais sustentável?

Pastora Cibele - Acredito que as religiões colaboram com a justiça social e a sociobiodiversidade do planeta ao oferecerem perspectivas teológicas para a compreensão da importância do sagrado, da fé na vida de povos e comunidades tradicionais que preservam o planeta também a partir de suas espiritualidades. É um caminho importante através da teologia feminista quando aborda a violência religiosa como um elemento que mantém muitas mulheres no ciclo da violência em direção ao feminicídio. A Fundação Luterana de Diaconia tem uma livreto que tematiza a violência religiosa que pode ser acessado aqui.

BdFRS - Como tu vês as perseguições a alguns padres e líderes religiosos que criticam o governo Bolsonaro?

Pastora Cibele - Vejo com muita preocupação o avanço de grupos reacionários dentro das igrejas no Brasil. Não podemos nomear ou justificar essas perseguições como sendo naturais ou esperadas porque nenhuma violência, assédio e imposição de silencio podem ser toleradas. Não são expressões cristãs e tampouco democráticas. São discursos de ódio, produção de fake news e violências contra o próprio corpo de Cristo. São grupos, alguns possivelmente financiados, que subverteram ou jamais entenderam o amor de Deus. "Se alguém declarar: 'Eu amo a Deus!', porém odiar a seu irmão e a sua irmã, está mentindo, porquanto quem não ama a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga". (1 João 4.20)

BdFRS - Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro intitulada “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil” aponta que 77% dos evangélicos afirmam ter recebido notícias falsas em “grupos da igreja” no WhatsApp – o dobro que outras religiões. E que quase 30% não checam as informações. Como tu vê essa situação?

Pastora Cibele - É uma pesquisa muito importante porque a desinformação, as notícias falsas estão na ordem do dia da religião cristã, especialmente no campo assim chamado “evangélico”. O recente 7 de setembro foi repleto de disseminação de desinformações através de vídeos gravados por lideranças religiosas cristãs convocando suas igrejas para atos em defesa do governo, contra as instituições. 

É impressionante como a desinformação tem força para revoltar, emocionar e insuflar grupos a produzir violências, tornando-se esse tema um problema para a democracia. Durante a pandemia, a desinformação tem sido um problema de vida e morte. Muitas pessoas morreram por conta do negacionismo provocado por informações mentirosas, muitas delas fundamentadas com argumentos bíblicos. Preocupa também que durante a pandemia o uso das ferramentas digitais foi ampliado nas igrejas por conta do impedimento de celebrações presenciais. 

As igrejas, em maior ou menor proporção, se tornaram ainda mais suscetíveis à desinformação nos grupos de WhatsApp em suas comunidades. De acordo com o Manifesto da IECLB de 2019: “A expressão fake news suavizou as consequências terríveis da mentira. Não podemos esquecer que o diabo é o pai da mentira (João 8.44) e que o compromisso cristão é com a verdade e a justiça (Efésios 6.14). O oitavo mandamento ordena não falar mentiras. Para cumpri-lo, de acordo com Martim Lutero, é necessário dizer a verdade e contradizer a mentira onde for necessário.”


"É um governo que incentiva a compra e o uso de armas, cujo presidente não usa máscara, não respeita o distanciamento e afirma que é idiota quem diz que precisa comprar feijão” / Arquivo Pessoal

BdFRS - Ao falarmos das religiões evangélicas, encontramos diversos segmentos: metodista, tradicional, luterana. Vemos no país o crescimento de uma vertente de pregação mais conservadora e fundamentalista. Gostaria que nos falasse um pouco da tua doutrina e como ela se apresenta nesse contexto.

Pastora Cibele - A pregação é um elemento importante para a homilética cristã que a estuda como uma disciplina. No coração da teologia luterana está o conceito da justificação pela fé, baseando em Romanos 1.17: "A pessoa justa viverá pela fé". Assim, a teologia luterana refuta o fundamentalismo e a teologia da prosperidade uma vez que ambos atuam juntos e negam a teologia da cruz, que é imprescindível para enxergarmos o sofrimento e as violências e nos movimentar em ações coletivas de superação das desigualdades. Pregações fundamentalistas alicerçadas na teologia da prosperidade apresentam a meritocracia em oposição à graça de Deus.

Para a teologia e confessionalidade luteranas, Cristo é a chave hermenêutica para entendermos as Escrituras e também a realidade. A palavra de Deus é senão o próprio Cristo Crucificado e Ressuscitado que diante de todos os poderes que produzem a violência permanece como uma boa nova de esperança e coragem para seguirmos em fé e ações diaconais transformadoras em meio à crise democrática e aos fundamentalismos. 


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Edição: Marcelo Ferreira