Para dizermos Sim à vida, é preciso ecoar o grito dos excluídos que hoje re-existem
Por Isabella Cristina Lunelli* e Liana Amin Lima da Silva**
A violência contra os povos indígenas não é atual, bem sabemos. Vêm de séculos, perpetuando-se sobre gerações, dissimulando-se em discursos aparentemente civilizatórios- integracionistas e perpetrando-se em diversos tipos de ações e omissões estatais.
Essas ações e omissões, embora nem sempre revestidas de crueldade, não escondem o racismo daqueles que as praticam. Achando “feio aquilo que não é espelho”, como poetizou Caetano Veloso, a sociedade hegemônica parece não se importar com a continuidade existencial de povos e grupos étnicos culturalmente diferenciados, manifestando o etnocentrismo em sua mais perversa faceta.
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Nesse mês, o recém-lançado Atlas da Violência 2021 demonstrou que entre 2009 a 2019, a taxa de mortalidade dos povos indígenas aumentou em 21,6%, corroborando que os povos indígenas em território nacional encontram-se em risco de genocídio, sobretudo àqueles com reduzida população. Sabemos, também, que, de um total de 305 povos, quase um terço deles encontram-se em situação de extrema fragilidade demográfica: ao menos 70 deles possuíam em 2010 uma população inferior a 100 indivíduos.
Essa violenta realidade, mais do que demonstrar a intencionalidade de certos indivíduos e grupos específicos de aniquilar a população indígena, com o autoritarismo sustentado num padrão de estrutura colonial, o que transparece é a ineficiência do Estado brasileiro em garantir aquilo que é mais elementar: a vida, seja na perspectiva individual ou coletiva. Não são 521 anos de resistência dos povos indígenas apenas, são mais de 500 anos de ausência de interesses político-econômicos de se enfrentar uma questão bem conhecida em nossa realidade.
Em meio à escalada de violência física contra os povos indígenas, em meio ao enfrentamento à pandemia e genocídio cotidiano, nessas últimas semanas acompanhamos a presença de milhares de indígenas em Brasília, com suas rezas e cantos direcionados à Suprema Corte. Querem ser ouvidos e sentidos em meio àquele que se configura como um dos principais julgamentos nas questões indígenas desse século.
Isso porque o que está em pauta no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365 é a famigerada “tese do marco temporal”. Não se trata apenas de mais uma ação, em meio a tantas que permanecem sem uma resolução dos conflitos socioambientais, mas do próprio futuro dos povos indígenas.
O caso se iniciou como uma ação de reintegração de posse proposta pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng, que identifica a área como de ocupação tradicional [3]. Este território está sobreposto a um parque estadual e teve seu processo administrativo de demarcação perante as instituições públicas iniciado, sendo identificada como parte adjacente da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãnõ, mas se encontra nesse momento paralisada.
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O que se está em discussão nesse caso, resumidamente, é se os povos indígenas teriam direito à posse das terras se nelas não estivessem ocupando na data da promulgação da última Constituição Federal. É dizer, se em 5 de outubro de 1988 os povos indígenas, que reivindicam a demarcação de determinada terra não estivessem na área em questão, teriam ou não direito de ali permanecerem exercendo sua posse.
Lembre-se que, segundo a própria Constituição Federal, a terra indígena uma vez demarcada constitui-se patrimônio público da União que garante aos indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo.
Aliás, a Constituição Federal garante aos povos indígenas os direitos originários – direitos, portanto, anteriores ao surgimento do Estado - sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por isso, é um dever da União reconhecer e demarcar as terras. Esse mesmo texto constitucional determinou que a União concluiria a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da sua promulgação. Tarefa ainda inconclusa.
A questão, por trás dos argumentos jurídicos, é justamente a violência que incide ininterruptamente sobre essa população. Muitos desses povos não estavam em suas áreas de ocupação tradicional porque dali foram expulsos, transferidos ou deslocados forçados, ameaçados, assassinados. Por isso, negar os direitos originários dos povos e impor que comprovem que existia conflito pela posse da terra e o chamado “renitente esbulho” é ignorar todas as violências perpetradas e expulsões dos povos no período anterior à Constituição Federal.
Violências e crueldades essas muitas das quais executadas pelo próprio Estado durante a ditadura militar, pelo Serviço de Proteção ao Índio e Localização do Trabalhador Nacional (SPILTN). É ignorar ainda que os direitos dos povos indígenas à posse de suas terras já estavam reconhecidos no Alvará Régio de 1o. De Abril de 1680, na Lei de Terras de 1850, na Constituição da República de 1934 e Constituições subsequentes.
Curiosamente, a tese do marco temporal surgiu em meio à uma solução de outro conflito territorial, envolvendo a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (Petição 3.388 RR). Se não era a intenção de tumultuar o acesso aos povos indígenas às suas terras e à vida – uma vez que um não se desprende de outro – quando foi suscitada em plenário pelo relator do processo, não se pode negar que calhou muito bem aos que nela passaram a enxergar um argumento para se relativizar e restringir direitos constitucionais dos povos indígenas.
Na prática, a tese do marco temporal – já em aplicação por alguns órgãos do poder executivo, como a própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI) - tem servido para negar o acesso às terras aos povos indígenas, paralisando todos os processos demarcatórios que estavam em curso. Literalmente, a invenção jurídica do marco temporal serve apenas para concretizar o discursivo anti-indígena de “nenhum centímetro de terra demarcada” já proferido por aquele que se investe no cargo de Presidente (da República) ao mesmo tempo que rasga a Constituição Federal e os princípios do Estado Democrático de Direito.
A amplitude do caso levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecer, ainda em 2019, tratar-se de uma questão constitucional de repercussão geral. Isso porque, há alguns anos a discussão nas esferas dos poderes estatais vem se amplificando, corroendo instituições, procedimentos e agentes públicos. É preciso orientar todos os poderes do estado sobre como a Constituição e os direitos relativos à demarcação de terras indígenas que nela estão reconhecidos devem ser compreendidos e internalizados nas funções, sobretudo governamentais, não se sujeitando esses a delírios políticos extremistas.
Nesse momento, não é somente a demarcação da TI Ibirama Laklãnõ que se encontra suspensa, aguardando o deslinde dessa questão. Há mais de oitenta processos que aguardam o desfecho desse julgamento. Também há dezenas de partes interessadas que passaram a integrar a ação, os chamados “amicus curiae”.
Há milhares de indígenas, não indígenas e, inclusive, anti-indígenas atentos a cada voto de nossos ministros e ministras
Até esse instante, o julgamento segue com pontos positivos aos direitos indígenas. A Procuradoria Geral da República e o Relator do caso, o Ministro Edson Fachin, manifestaram-se contrários à aplicação do marco temporal, mas ainda faltam os votos dos(as) demais ministros(as).
Vale recordar, as ameaças de retrocessos nos direitos dos povos indígenas não estão somente no judiciário. Tramita no Congresso Nacional diversos projetos de leis que violam a Constituição Federal, dentre eles o PL 490/2007 que visa alterar a Lei 6.001/ 1973 (“Estatuto do Índio”) e os procedimentos administrativos de demarcação de terras, transferir para o Poder Legislativo a “última palavra” em cada processo de demarcação de terras e tenta emplacar a tese do marco temporal como letra da lei. Trata-se de uma grave violação aos direitos constitucionais dos povos indígenas, o que torna o desfecho no STF ainda mais urgente.
É preciso dizer um basta à toda injustiça social e cultural, à todo racismo ambiental que hoje vivem os 305 povos indígenas do Brasil. É preciso dizer um basta à política integracionista negacionista da existência dos povos na sua diversidade e modos de viver suas identidades e territorialidades próprias. Torna-se necessário superarmos a política genocida em prol de um paradigma existencial dos povos. E ressaltar: “O direito originário às terras não significa restaurar um passado já irreal, mas garantir um futuro possível”.
Para dizermos sim à vida é preciso ecoar o grito dos excluídos que hoje re-existem na Marcha das Mulheres Indígenas e Acampamento Luta Pela Vida em Brasília. Dizer “Marco Temporal Não!” é esperançar que o STF cumpra seu dever de guardião da Constituição.
*Isabella Cristina Lunelli é doutora em Direito, Política e Sociedade (PPGD/UFSC), pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários, integra a equipe da Indigenous People Rights International (IPRI) no Brasil. É membra do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
** Liana Amin Lima da Silva é doutora em Direito Socioambiental (PUCPR), professora de Direitos Humanos e Fronteiras da Faculdade de Direito e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos (FADIR/PPGFDH/ UFGD). Coordena o Projeto de Pesquisa (CNPq) "Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta Prévia, Livre e Informada: Direitos territoriais, autodeterminação e jusdiversidade". É membra do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
***Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla