Gente que lê na Bíblia que pastores devem cuidar do seu povo, não tem conivência com Bolsonaro

Nilza Valeria e Ariovaldo Ramos*

Esse é o momento de expor os pastores e líderes religiosos que convocaram os membros de suas igrejas para a ida às ruas no 7 de Setembro. A gente vinha avisando que eles estavam cometendo um crime, que não se atenta contra a democracia e suas instituições.

Sábia foi a irmã Cleonice, que achava tudo isso muito estranho. Ela que é da Assembleia de Deus de um desses pastores, lembrava do que aprendeu na escola: que na República há três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O presidente do Brasil, que é o chefe do Poder Executivo, não pode ameaçar os outros dois poderes, que existem para conter o governo nos limites da Constituição.

Irmã Cleonice não gostou quando viu o povo da sua igreja fazendo sinal de armas com as mãos. 

Ficava incomodada com a conversa que "bandido bom é bandido morto", pois sempre aprendeu que bandido bom é bandido salvo, regenerado pelo sangue de Cristo. Como o ladrão que estava ao lado dele na cruz - e a quem Cristo disse que estariam juntos no paraíso.

Quando ouvia os discursos inflamados do pastor, Irmã Cleonice, que é mulher de oração, pedia a Deus que tivesse misericórdia. Com o marido e o filho desempregados, não cogitou sair do Rio para São Paulo ou Brasília.

O que o pastor da Cleonice e outros pastores não sabiam é que há muita gente como ela dentro das igrejas. Tanto que, depois de tanto alarde feito por esses pastores, as manifestações foram fracas e marcam o tamanho do enfraquecimento de Bolsonaro. Não que ele tenha reunido pouca gente. Mas, reuniu menos do que o esperado.

Tinham crentes nas ruas, tinham. Mas muito menos do que Malafaia, Rene Terra nova, Rina e Marcos Feliciano esperavam ter.

A verdade é que Bolsonaro, assim como esses pastores e apóstolos estão prontos para cair. Irmã Cleonice é pobre. Ela sabe o quanto significa o aumento da conta de luz. Ou pagar quase R$ 100 no botijão de gás. Sabe que não dá para comprar carne e tem inventado mil maneiras de fazer ovo. Os dois netos não conseguem acompanhar as aulas online, pois o governo não garantiu os recursos para que estivessem conectados. A casa que ela mora tem apenas um computador. Os celulares dependem de créditos.

As estimativas mais confiáveis dão conta de umas 100 mil pessoas em Brasília e um pouco mais do que isso em São Paulo. Bolsonaro contava com 10 vezes mais gente para conseguir qualquer coisa. Bolsonaro irá afastar aliados, pois ninguém quer ser sócio de tentativa de golpe fracassado. Esses pastores irão afastar mais gente das igrejas.

Gente que lê na Bíblia que pastores devem cuidar do seu povo, não tem conivência com um presidente que deixou mais de 580 mil brasileiros morrerem de uma doença, por não ter negociado vacina ou tomado medidas restritivas.

Esses pastores são coniventes com morte, com a violência miliciana que cresce, com a fome que assusta quase 20 milhões de brasileiros, com o desemprego – que afetam o filho e o marido da Irmã Cleonice.

Esses pastores oferecem palavras ao vento. Não oferecem ações. Não oferecem a vivência da fé em Cristo que resulta em ações a favor dos mais pobres, dos desprezados. Outro dia Irmã Cleonice foi visitar uma prima e voltou à noite. O que viu no centro da cidade a entristeceu, centenas e centenas de pessoas dormindo nas calçadas, como se fossem bichos. Lembrou do homem jogado no meio do caminho, o samaritano, que todo mundo ignorava, na história que Jesus contou.

Malafaia e sua turma estão decepcionando a Igreja. Dando mal testemunho do amor de Cristo.

Irmã Cleonice voltou a reunir as irmãs da igreja para distribuir quentinha. E junta roupas, para doar nos dias frios. Ela sabe que o que faz é como enxugar gelo. Que as pessoas precisam, de verdade, de casa, de trabalho, de comida, de escola para o filho, de médico para atender quando ficam doentes. Ela não sabe como explicar isso. Só sabe que o pastor da sua igreja não se importa.

Bolsonaro também não. Ela queria que ele mostrasse trabalho. Quer emprego pro filho, quer emprego para o marido. Quer escola para os netos. Quer atendimento médico quando precisa. Não entende por que um presidente xinga tanto. Irmã Cleonice, assim como tantos, é o estertor do bolsonarismo evangélico. Gente que perdeu parentes e irmãos da igreja para a covid-19. Gente que desconfiou da vacina, mas foi mudando de visão ao enterrar seus mortos.

Irmã Cleonice visitou a prima, pois a filha da prima, com 40 anos, não resistiu ao ser intubada, contaminada pelo coronavírus. Está mais do que provado que Bolsonaro é inepto para o cargo. E os pastores que alimentam seu ego, espiritualizando a política também. São dignos de cadeia, para alimentar de justiça os milhares de injustiçados filhos desse solo, manchado de sangue.

É irmã Cleonice, o único sangue que precisamos é o sangue de Cristo. E esse já foi derramado por nós. Como vai ser daqui até 2022, não sabemos. Talvez com muita bravata por parte desses que já estão derrotados. Mas, com esperança de que dias melhores hão de vir. Essa é a oração constante de Cleonice.

*Nilza Valéria é jornalista e Ariovaldo Ramos é pastor. Ambos são coordenadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e colaboradores da coluna Papo de Crente do Brasil de Fato RJ.

Edição: Mariana Pitasse