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Visibilizar a existência lésbica é uma reivindicação feminista

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As mulheres lésbicas e feministas refletem e atuam para romper com o tabu da heterossexualidade e encarar de modo crítico a chamada heterossexualidade compulsória e também a heteronormatividade - Elaine Campos / SOF
A lesbofobia apagou concretamente existências; simbolicamente, os casos são incontáveis

Por Fabiana de Oliveira Benedito*

 

29 de agosto é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, data instituída a partir do 1º Seminário Nacional de Lésbicas, realizado em 1996, no Rio de Janeiro. Infelizmente, a importância e a urgência de denunciar a invisibilização das existências e das reivindicações políticas das mulheres lésbicas crescem todos os anos, à medida que vemos o conservadorismo se fortalecer.

Há quem afirme, equivocadamente, que o conservadorismo é uma “cortina de fumaça”, que distrai a população dos temas de real interesse das trabalhadoras e dos trabalhadores. Na verdade, a classe trabalhadora não é uma abstração, não tem uma única sexualidade, e o conservadorismo está mais para base de sustentação do que para cortina de fumaça do bolsonarismo, embora seja mais amplo que ele.

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Basta ver que a dança das cadeiras na composição ministerial do governo Bolsonaro nem mesmo ameaça envolver Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Ela parece intocável, porque a ideologia por detrás de suas afirmações (“meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, por exemplo) estrutura o projeto bolsonarista. Não é detalhe, fumaça ou dimensão secundária. É central.

Cabe observar que a pasta ganhou esse nome no início da gestão de Jair Bolsonaro. A família a que a nomenclatura se refere é a família patriarcal, em que mandam os homens, para a qual só há uma composição possível, que, por óbvio, não é e nem pode ser homossexual. Para garantir que não seja, é preciso punir quem ousa desobedecer o roteiro da heterossexualidade obrigatória. É preciso tratar a desobediência como exceção, como expressão antinatural, pecado ou doença. A punição se dá na forma, ora como invisibilidade, ora como humilhação.

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Forjar uma sexualidade dominante - a heterosexual - é fundamental para o capitalismo. Para a manutenção dessa hegemonia, também é importante tratá-la como natural, e para isso borram-se outras possibilidades. O apagamento da existência lésbica se dá em parte por ser tratada como algo excepcional, “diverso”, extrínseco à experiência das mulheres, e também pela compreensão da heterossexualidade como “preferência”, negando que essa norma tem sido imposta para o conjunto das mulheres.

Ainda nesse sentido, interessa ao conservadorismo reforçar permanentemente os papéis de gênero, presentes em produtos culturais e discursos políticos dos mais diversos. Reafirmam a ideia patriarcal de que as mulheres devem ser “belas, recatadas e do lar”, responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados e pela reprodução da vida, e também que devem ser heterossexuais, embora essa dimensão nem sempre seja privilegiada nas análises sobre a ofensiva conservadora e as opressões estruturais.

Diante disso, é contraproducente dissociar a reivindicação da livre expressão da sexualidade e da existência lésbica, da luta pela superação do capitalismo patriarcal e racista. O capitalismo se imbrica profundamente ao ideal da família no qual as mulheres “belas, recatadas e do lar” são oprimidas.


14ª Caminhada das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, em São Paulo - 2016 / Paulo Pinto/ Fotos Públicas

Visíveis pela violência e pela dor

Em 2018, por iniciativa do Grupo de Pesquisa Lesbocídio, do Núcleo de Inclusão Social (NIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi publicado o Dossiê sobre lesbocídio no Brasil de 2014 a 2017, que estima a morte de mulheres lésbicas no Brasil no período supracitado, por assassinato ou suicídio. O trabalho, de grande relevância e ineditismo preocupante, suscita em nós, mulheres lésbicas e feministas, um misto de medo, indignação e estranhamento. O estranhamento é uma sensação constante quando algo trata da experiência lésbica, fruto de um apagamento histórico. Estranha-se não somente o absurdo, mas também o desconhecido, que só se torna visível pela violência e pela dor.

Em julho de 2021, uma mulher lésbica ganhou o noticiário. A visibilidade, neste caso, correspondeu ao padrão da notoriedade oferecida pela violência. A vereadora Verônica Lima (PT), de Niterói (RJ), foi atacada por outro parlamentar durante uma sessão legislativa. “Quer ser homem? Então vou te tratar como homem!”, disse ele, utilizando a orientação sexual da mandatária para constrangê-la publicamente e, mais que isso, para afirmar que a política não é espaço para as mulheres lésbicas e negras, como é o caso da vereadora.

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Em junho, outro caso ganhou manchetes. Ana Paula Campestrini, de 39 anos, foi assassinada com 14 tiros. O autor? O ex-marido. O motivo? Ana Paula se descobriu lésbica, se divorciou e, um tempo depois, passou a se relacionar com outra mulher. Ele não “aceitou” os caminhos trilhados pela ex-esposa, a quem se referia como "bruxa", "egoísta" e "insensível", e então cometeu o crime. "A única coisa que ela queria era ser feliz sendo quem ela era", lamentou a companheira de Ana.

Em janeiro deste ano, o portal O Liberal publicou uma notícia intitulada “Militar aposentado mata esposa e amiga a facadas no bairro do Guamá, em Belém”. As duas vítimas foram retratadas como amigas, embora o assassino tenha escrito a palavra “sapatão” na parede. O texto classificou a expressão como “palavra ofensiva” e “insulto”. Nos comentários, havia quem negasse a hipótese de que as vítimas tivessem algum tipo de envolvimento afetivo e sexual. Para além das especulações, cabe questionar como a mera possibilidade de quebra do pacto social da heterossexualidade pode acarretar inúmeras violências.

A lesbofobia, nestes casos, apagou concretamente existências. Simbolicamente, entretanto, os casos são incontáveis. É possível que uma de nossas reivindicações mais básicas seja o direito de existir, sem mais esconderijos, sublimações e violências.


Esforço passa por caminhos diversos, que incluem a elaboração de uma memória coletiva das experiências lésbicas / Paulo Pinto / Fotos Públicas

A visibilidade que queremos

As mulheres lésbicas e feministas refletem e atuam para romper com o tabu da heterossexualidade e encarar de modo crítico a chamada heterossexualidade compulsória (ou obrigatória) e também a heteronormatividade. Este esforço passa por caminhos diversos, que incluem a elaboração de uma memória coletiva das experiências lésbicas para fazer frente à invisibilização.

Queremos outra visibilidade. Queremos fazer a passagem do silêncio à palavra e romper com o indizível, como nos propõe a feminista Adrienne Rich, a partir de uma conexão plenamente consciente e política entre mulheres. Nesse sentido, também reivindicamos o direito e a importância de celebrar nossas existências, relações pessoais e políticas, e nossos afetos.

Encerro apresentando um trecho de “Poema de olhos abertos”, poesia de Helena Zelic, comunicadora, integrante da SOF Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres, que sintetiza dubiedades vivenciadas por mulheres lésbicas, orgulhosas que somos de nossas existências e cansadas como estamos de dormir de olhos sempre abertos.

“namorar você:

o fio e a navalha

o cais e o canhão

a vela, o incêndio

o espelho e o golpe

 

ainda escrevo

olhos atentos e torço

não seja esta nossa condição

ininterrupta

 

eu só queria namorar você

e poder tremer as pernas

mas não de medo

nunca o medo”

 

*Fabiana de Oliveira Benedito é comunicadora, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo