Desmonte

Trabalhadores apontam irregularidades na liquidação da estatal Ceitec, fabricante de chips

Faturamento do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada cresceu 50 vezes em oito anos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Ceitec foi criado em 2008, durante o segundo governo Lula (PT) - Reprodução / Ceitecsa

Um crime contra a nação. Foi assim que Silvio Luis Santos Júnior, representante dos trabalhadores do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), se referiu à liquidação da estatal em audiência pública na tarde da última segunda-feira (23).

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O Ceitec tem sede em Porto Alegre (RS) e é a única empresa da América Latina que atua na produção de chips e semicondutores, utilizados na fabricação de componentes eletrônicos.

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A audiência foi uma iniciativa do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), para reunir possíveis irregularidades no processo de desestatização aberto pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

O processo de liquidação, aprovado em fevereiro, tem prazo de um ano para finalização. A proposta é que a estatal, criada em 2008, seja substituída por uma organização social (OS).

“Todos os estudos que embasaram o PPI [Programa de Parcerias de Investimentos] são superficiais e não possuem ancoragem técnica”, afirmou Santos Júnior, que preside a Associação dos Colaboradores do Ceitec (ACCEITEC).

“Eles levaram em conta dados do fluxo de caixa só até 2018, desconsiderando a base de produtos e patentes que estavam em desenvolvimento anteriormente pela empresa e sem tomar conhecimento da relevância desses produtos e pesquisas e o impacto que isso teria no fluxo de caixa da companhia.”

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O presidente da associação ponderou que o objetivo do Ceitec nunca foi gerar faturamento, mas formar recursos humanos.

“Mesmo assim, ele teve aumento de 50 vezes em oito anos. O faturamento de 2020 foi de R$ 13 milhões. Em plena pandemia e em plena liquidação, esse número já foi abatido em 2021 em função do volume de negócios que a empresa tinha engatilhado, colocando em xeque completamente o estudo feito pelo PPI.”

O Ceitec, na visão dele, poderia ajudar a diminuir a dependência de produtos importados e fortalecer a indústria nacional.

Entre as supostas irregularidades na liquidação, Santos Júnior citou indícios de perseguição a colegas da ACCEITEC, como a exoneração do porta-voz Júlio Leão e de duas trabalhadoras do setor de auditoria interna. Só em abril, 34 funcionários de carreira do Ceitec foram exonerados desde o início do desmonte “mesmo tendo um relatório dizendo que são atividades essenciais para a empresa.”

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Outra preocupação levantada na audiência diz respeito ao terreno onde hoje funciona o Ceitec, na capital gaúcha. A área não é da União, mas foi doada pela Prefeitura à estatal. O presidente da ACCEITEC citou riscos ambientais que foram ignorados pelo governo, uma vez que o ambiente utiliza produtos químicos que requerem tratamento adequado.

O custo de descomissionamento dos equipamentos, para evitar risco de contaminação, é estimado em R$ 300 milhões.

“Qual o pecado capital que nós cometemos para sermos tratados com tamanho desrespeito e perseguição?”, questionou.

“Como brasileiros e brasileiras, estávamos empenhados para transformar esta nação em um país mais desenvolvido, com menor dependência tecnológica estrangeira. Nos sentimos humilhados com tamanho desrespeito e sabemos que tudo não passa de uma meta irresponsável de um governo que precisa mostrar ao seu eleitor que conseguiu liquidar uma de suas estatais, mesmo pagando um alto preço.”

Por fim, Santos Júnior solicitou que a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados suspenda a liquidação “até que todos os riscos que envolvem o processo sejam mitigados.”

Outros participantes da audiência, como Augusto Gadelha, ex-presidente do conselho de administração do Ceitec e o próprio deputado Nilto Tatto, ressaltaram que a estatal é estratégica para o desenvolvimento do país.

“É mais um passo para o desmonte da nossa estrutura de inteligência. Não tem lógica o que esse governo está fazendo”, disse o secretário executivo da Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), Celso Pansera.

“É necessário algum tipo de decreto legislativo para sustar os efeitos dessa iniciativa, até que estudos consistentes sejam feitos.”

Tatto se comprometeu a estudar formas de barrar a liquidação, ao menos temporariamente, como sugeriu Pansera.

Cinco projetos de decreto legislativo já tramitam na Câmara dos Deputados pedindo anulação da decisão do governo federal de privatizar o Ceitec.

Para entrar em vigor, um projeto de decreto legislativo necessita de maioria simples, desde que esteja presente no Plenário a maioria absoluta dos deputados (257). O projeto não vai à sanção do presidente e é transformado em lei após a aprovação no Parlamento.

Outro lado

A dissolução societária do Ceitec está prevista no Decreto 10.578/20, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em 15 de dezembro daquele ano.

Rafael Cavalcante, secretário de fiscalização do sistema financeiro nacional, detalhou os três processos abertos de controle externo sobre a liquidação no Tribunal de Contas da União (TCU).

A análise técnica aponta para a falta de elementos que embasassem a decisão do governo Bolsonaro de extinguir a estatal. O relatório ainda não foi votado pelos ministros do Tribunal, mas indica que a liquidação pode não representar uma economia aos cofres públicos, como se pretendia.

“A gente foi na linha de dar ciência aos entes governamentais para que, na execução do plano de trabalho, com base nesses riscos, possam fazer medidas para mitigá-los e contorná-los”, disse Cavalcante.

“Entendemos que ultrapassa os poderes do TCU sustar um decreto presidencial”, ponderou, comentando em seguida alguns dos pontos citados pelo presidente da ACCEITEC.

“Sobre as eventuais perseguições: em síntese, a secretaria do tribunal adotou por medida cautelar para suspender a rescisão contratual, até que fossem apresentados os critérios utilizados [para as exonerações de trabalhadores que desempenhavam cargos na ACCEITEC]”, afirmou.

Em relação ao terreno, o TCU não reconheceu o risco citado por Santos Júnior.

O secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, Sergio Freitas de Almeida, reconheceu que a produção de chips e semicondutores é de interesse nacional.

“Por isso, trabalhamos para viabilizar via edital a contratação de parte dos pesquisadores que já atuavam no Ceitec, de maneira a preservar o conhecimento específico e valioso desses cientistas”, disse.

Leonardo Raupp, assessor da secretaria de coordenação e governança das empresas estatais do Ministério da Economia, enfatizou que o TCU acompanhou todas as etapas da liquidação.

“Até o momento, não existe nenhuma constrição ao andamento das atividades do liquidante. Então, até agora, entende-se por regular”, concluiu.

Segundo o integrante da equipe de Paulo Guedes, o tema já foi analisado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), que também se posicionou pela regularidade do andamento da liquidação.

Edição: Vivian Virissimo