Paraíba

Coluna

Tire seu conhecimento branco-ocidental-universal do caminho que eu quero passar com minha cor

 Lélia Gonzalez, umas das principais intelectuais negras do país.
Lélia Gonzalez, umas das principais intelectuais negras do país. - Reprodução
É fundamental se distanciar de uma ciência que se pretende neutra, não ideológica e racista

Por Fabson Calixto da Silva* e Edna Prado**  

 

Qual o lugar dos conhecimentos negro-africano-referenciados na universidade brasileira? Por que as intelectuais negras e, os intelectuais negros e suas produções científicas ainda encontram dificuldades de ser tomadas como referências acadêmicas?  

É necessário a compreensão de que os conhecimentos, a linguagem oral/escrita/visual/ corporal (já que esperam dos corpos negros performances marginais) e o que é validado como ciência na academia pertence ao Ocidente e sua estrutura de dominação eurocêntrica que ainda insiste em silenciar, negar e tornar invisível outras bases epistêmicas consideradas fora do lugar. 

O brancocentrismo é um fato, e este consiste em um tipo de dispositivo teórico e epistêmico sob o monopólio das pessoas brancas na instauração de uma (falsa) universalização de saberes e conhecimentos, certificando, desse modo, as violências epistêmicas raciais das quais as universidades se valem.  

O genocídio para com os povos negros africanos do continente e da diáspora não se explica somente com a morte e a aniquilação física. Quando se negam os saberes, os modos de vida, as estéticas e as espiritualidades de base africanas e afro-brasileiras, por exemplo, é um outro modo de exterminar as existências e humanidades da população negra.  

É desse modo que o racismo acadêmico e o epistemicídio funcionam, criando diferentes obstáculos para não circularem as produções acadêmicas negro-africana-referenciadas. Os questionamentos, dúvidas e incertezas da eficácia das pesquisas negras são acompanhadas constantemente da acusação de “isto é militância, não é ciência”! Tal acusação é uma das estratégias forjadas pelo pacto da branquitude e da estrutura do conhecimento ocidental em desqualificar produções outras para que não se estabeleçam na academia e na ciência, uma vez que ameaçam o monopólio científico branco do Ocidente.   

As fragilidades das pesquisas negras, produzidas por intelectuais negras e negros, apontadas por certificadores brancos, são até que ponto uma questão de ciência (objeto, problema, metodologia e etc.), neutralidade e objetividade?  

Ora, qual o pertencimento racial dos sujeitos que compõem o cânone científico das diferentes áreas que estabelecem os critérios para autenticar o que é ciência e não é ciência? A qual localização geográfica o cânone pertence? Não é curioso que o grupo racial destes seja branco e que suas matrizes de pensamento estejam localizadas no Ocidente, no eixo Europa-Estados Unidos.  

Se o cânone científico tem cor e está localizado em uma estrutura de hegemonia ocidental, isto se enquadra no campo da militância ou da ciência? Por isso, é fundamental racializar as epistemologias e quem as produz. Pois, o privilégio branco também é epistêmico. Os homens brancos ocidentais historicamente têm ocupado lugar de destaque nas produções, hierarquizando conhecimentos e inferiorizando produções outras de outros corpos políticos. A presença massiva de intelectuais, autores e professores brancos na universidade é uma evidência dos efeitos do projeto colonial-racista-patriarcal.  


Beatriz Nascimento: intelectual negra e quilombola. / Reprodução

O imaginário racista impede, na academia, o trânsito livre de corpos negros intelectuais e produtores de ciência. É verdade e louvável o aumento gradativo da presença destes corpos promovido pela política de cotas raciais. No entanto, a violência racial nos lembra cotidianamente que a universidade não é um lugar de acolhimento racial, não é um espaço atrativo para negras e negros. Pois, são inúmeras as dificuldades para a instauração de um aquilombamento epistêmico nas universidades, devido ao número reduzidos de professoras negras e professores negros na graduação e ainda mais na pós-graduação, a falta de incentivo de produções negras no ensino, na pesquisa e na extensão, a pouca existência de linhas de pesquisa sobre questões raciais, a reduzida quantidade de livros de autores negras e negros quando comparadas com o legado branco.  

Existem outras formas de geopolíticas do conhecimento que têm na matriz africana e diaspórica a sua sustentação. Propagar teorias insurgentes, sejam elas decoloniais ou descoloniais, afrocêntricas, do Sul etc., é uma forma de desobediência epistêmica. Romper com o silêncio dos saberes e conhecimentos localizados em outros espaços não ocidentais, possibilitando suas existências fora do domínio branco, é um caminho para conceber o status de sujeitos àqueles que historicamente foram colocados nas margens e classificados como “marginais”. 


Abdias do Nascimento: Intelectual negro brasileiro. / Reprodução

 

O espaço acadêmico enfatiza um sistema de supremacia, reforçando uma possível essência europeia homogeneizadora com poderes epistêmicos. Há, portanto, o predomínio de conceitos e ideologias universais, interditando o direito à alteridade de existência cultural, ideológica e epistêmica de sujeitos que fazem parte de outros âmbitos culturais longe da hegemonia europeia.  

Assim, uma postura ética e política é aquela comprometida em reconhecer nos sujeitos de localidades não ocidentais, seus saberes, suas intelectualidades e potencialidades. O comprometimento torna-se um mecanismo de indagação das estruturas de poder coloniais, de seu sistema de dominação que postula uma essência europeia universal.   

É fundamental se distanciar de uma ciência que se pretende neutra, não ideológica e racista, que historicamente produziu parâmetros de análise baseados no seu próprio universalismo e monopólio científico.  

A descolonização do saber e do conhecimento torna-se algo urgente, na medida em que compreendemos que junto às práticas de colonização, os saberes africanos, aqueles classificados como insignificantes e marginais, foram silenciados, apagados e aniquilados. Na contramão, uma história única e os saberes localizados nos territórios que exploraram as colônias foram apresentados como referenciais verdadeiramente universais. Tal padrão epistemológico é fruto do colonialismo que condicionou uma dominação cultural e do saber.  

Portanto, questionar as produções científicas lidas como puras, legítimas e universais é uma postura contra hegemônica, na medida em que são apresentadas outras epistemes que atravessam as experiências africanas e diaspóricas. Epistemologias outras são insurgentes não por oposição simplesmente ao eurocentrismo, mas sobretudo, porque propõem um olhar outro, não marginal sobre aqueles que foram subalternizados. Esta é uma das proposições da teoria da afrocentricidade que reivindica o posicionamento de centro dos sujeitos africanos a partir de suas próprias experiências e contextos culturais, isto é, a análise das condições destes deve ser tomada por meio de uma localização que esteja centrada na África.  

 

Para saber mais: 

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora.  São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 93-110.  

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n.1, p. 98-109, Jan/Abr 2012.  

GROSFOGUEL, Ramon. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicidios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31 n. 1 Jan/Abr 2016, p. 25- 49.  

 

* Cientista Social e doutorando em Educação (PPGE-UFAL), professor de Sociologia, candomblecista e membro do Instituto do Negro de Alagoas (INEG) e da Associação de Negras e Negros da UFAL (ANU). Pesquisador das questões raciais e educação, racismo e educação e política de cotas. 

** Doutora em Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas.  

 

 

Edição: Heloisa de Sousa