Violações

Brasil terá que detalhar medidas adotadas após tortura e morte de jovem em clínica psiquiátrica

Caso Damião Ximenes Lopes marcou a primeira condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Damião morreu aos 30 anos dentro da única clínica psiquiátrica vinculada ao sistema público em Sobral (CE) - Arquivo pessoal

O Estado brasileiro tem até 15 de novembro para apresentar um relatório detalhado das medidas adotadas para prevenção da violência em clínicas e hospitais psiquiátricos. A determinação é de Pablo Saavedra Alessandri, secretário da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), e se refere ao cumprimento da sentença do caso Damião Ximenes Lopes.

Em 4 de outubro de 1999, o jovem Damião, então com 30 anos, morreu na antiga Casa de Repouso Guararapes, então vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em Sobral (CE). O corpo apresentava lesões típicas de tortura, que foram omitidas na certidão de óbito.

O caso marcou a primeira condenação do Brasil pela Corte IDH na história, em 6 de julho de 2006, por unanimidade.

Em audiência na Corte IDH há quatro meses, o Estado brasileiro reconheceu que viola os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais.

Na ocasião, a Justiça Global, a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura denunciaram violações de direitos humanos que continuam ocorrendo desses espaços de privação, como tortura, fome e mortes por barras de ferro.

No relatório, o Brasil também precisará responder a esses questionamentos, a luz de dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o tema. Em dezembro de 2018, foram realizadas inspeções em 40 hospitais psiquiátricos brasileiros. Em 33 deles, havia pessoas internadas há mais de um ano. Em seis deles, mais da metade dos internados se encontravam na instituição havia mais de um ano.

Essas violações estão descritas em um estudo publicado em março de 2020 pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, pelo Conselho Nacional do Ministério Público e pelo Ministério Público do Trabalho. O material demonstra que são recorrentes os casos de violência física, estupro, LGBTfobia, revista vexatória e intolerância religiosa nesses ambientes.

Contexto

O caso Damião Ximenes Lopes foi encaminhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à Corte em 1º de outubro de 2004. A demanda, contra a República Federativa do Brasil, apontava violação do direito à vida, integridade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial.

O Estado brasileiro foi acusado de violar os direitos previstos nos artigos 4 (direito à vida), 6 (à integridade pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) do Pacto de San José da Costa Rica.

Conforme consta no processo, Damião “desenvolveu uma condição mental depressiva de origem orgânica, ou seja, adquirida através de alterações funcionais em seu cérebro.”

Entre 1995 e 1999, o jovem foi internado três vezes na mesma clínica, por ser a única com serviço público em Sobral.

Na última vez, a mãe de Damião, dona Albertina, o levou para uma consulta na clínica, mas foi informada de que não havia médicos disponíveis. Com receio que o filho tivesse uma nova crise psiquiátrica em casa, ela deixou o filho internado para aguardar um exame médico.

Em uma visita em 3 de outubro de 1999, dona Albertina viu o filho amarrado com as mãos para trás do corpo,  “sangrando pelo nariz, com a cabeça toda inchada e com os olhos quase fechados, vindo a cair a meus pés, todo sujo e com cheiro de urina.”

Horas depois, Damião recebeu uma prescrição médica sem sequer ter sido examinado, e morreu no dia seguinte.

O resultado da necropsia foi “morte natural”, apesar das lesões no olho, no ombro e no punho. A família desconfiou do laudo e conseguiu transferir o corpo para a capital Fortaleza (CE), onde foi feita uma nova análise. Desta vez, o resultado foi “morte indeterminada”.

Após pressão da família, a Casa de Repouso de Guararapes foi descredenciada pela Assembleia Legislativa do Ceará, mas não houve avanços sobre a responsabilização dos envolvidos até o caso chegar à CIDH, em novembro de 1999.

Na sentença, em 2006, a Corte estabeleceu que o Estado brasileiro deveria garantir celeridade para investigar e sancionar os responsáveis pela tortura e morte de Damião, além de indenizar a família do jovem.

Outra obrigação foi assegurar condições dignas em clínicas e hospitais e desenvolver um programa de formação e capacitação para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, para que casos como aquele não se repitam.

Exceto pelo pagamento de indenização aos familiares, a Corte IDH considera que o cumprimento da sentença foi parcial. É sobre essas lacunas que o Estado está sendo novamente convocado a se pronunciar.

Edição: Anelize Moreira