Rio Grande do Sul

Coluna

“Um despertador acre como o sol no olho” (João Cabral de Melo Neto)

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Gráfico apresentado pela senadora Simone Tebet na CPI da Covid - Reprodução
Precisamos assumir responsabilidades, agir apontando o futuro, seguir o exemplo do padre Lancelotti

A imagem acima foi apresenta pela senadora Simone Tebet, na CPI da Covid. Num primeiro momento, ela me fez lembrar o power point do Dallagnol.

Lá, onde reinava uma simetria infantilóide. As setas representavam a ilusão de coerência entre suas convicções sem base e as maquinações da República de Curitiba. Ridículo, mas acabou servindo para trazer Bolsonaro à Presidência do Brasil.


Power point do Dallagnol, uma simetria infantilóide / Reprodução

Já na figura apresentada pela senadora Tebet, as setas são tão caóticas como tudo em nosso mundo. Mas elas têm fundamento e apontam a abundância de indícios da corrupção, a desfaçatez ofensiva e o desrespeito que se instalaram nesta República em erosão acelerada.

Se o ppt do procurador indicava sua meninice, este da senadora transborda em maturidade e indignação. Este é, como desenhou João Cabral, “um despertador acre como o sol no olho”.

Necessário e esclarecedor, mas insuficiente, porque em si não basta.

E também porque ao impor sinais de alerta, se choca com movimentos no sentido oposto.

Vejam que no mesmo dia (19 de agosto) e na mesma sessão da CPI escutamos o senador Heinze tratando de mudar de assunto, ao repetir suas leituras tropeçantes em favor do tratamento precoce, com cloroquina e azitromicina, conforme recomendado em algum momento por seu guru, o francês Didier Raoult. Internacionalmente ridicularizado com o prêmio Rusty Razor 2020 (algo como a “navalha enferrujada”, concedido em contraposição à “navalha de Occan”, tão cara à ciência). Didier efetivamente mereceu aquele destaque negativo no campo da pseudociência. Inclusive, ele mesmo já assume a fragilidade de suas afirmativas iniciais, baseadas em seis pacientes, além de reconhecer ausência de relação entre o tratamento que recomenda e a redução de mortes por covid.

Mas para nosso bravo senador, isto não importa. Ele não apenas mantém sua fé cloroquínica como contabiliza as almas que não partiram graças à ela, e ainda afirma que em breve veremos desmascarado, pelos documentos que está reunindo, o conluio global contra um tratamento que resolveria “por sessenta reais”, negociatas de uma big farma que assim se regala num “mercado de 100 bilhões de dólares”.

Vale a pena rever a gravação daquela sessão, e até torcer pelo senador.

Mas estou fugindo do assunto. O fato é que ao aproximar as falas do Heinze ao ppt do Dalagnol, lembrei do filme do Peter Pan. Lá, bastou que as crianças repetissem com fé: “eu acredito em fadas”, “eu acredito em fadas”, “eu acredito em fadas”..., para que a Sininho ressuscitasse, os piratas fossem vencidos e a Terra do Nunca se fizesse preservada, em sua gloriosa fantasia.

É verdade que este assunto poderia ser trabalhado desde a perspectiva da “síndrome de Peter Pan”, com aquelas metáforas associadas ao medo do crescimento e à fuga das responsabilidades que a vida adulta, em sociedade, sempre exige. Mas o filme me parece mais adequado e comunicativo, considerando os envolvidos e seus posicionamentos.

O “eu acredito em fadas”, assim como o “eu acredito em cloroquina” ou “a culpa é do PT” ou mesmo “o triplex é do Lula”, e tantos outros devaneios se encaixam numa mesma fantasia, que só se mostra eficiente porque distrai os incautos, enquanto a vida segue.

Eu acredito, logo é verdade. Mito, Mito, Mito.

A imagem trazida pela Tebet me pareceu simbólica porque resume o esforço de tantos outros brasileiros empenhados em ajudar a desanuviar nossa leitura de mundo, nestes tempos de trevas.

E penso que aquela confusão de setas nos permite ilustrar a necessidade de agirmos em muitas frentes, e nos convoca a irmos além do discurso cotidiano. Não se trata apenas desmascarar a canalhice e o ilusionismo dos golpistas. Eles estão bem posicionados e se renovam, criando véus atrás de cortinas. Eles são eficazes em retocar a maquiagem das fantasias com que nos envolvem. E são sedutores, tanto no uso dos tanques que resfolegam, como das ameaças veladas, das falas macias, das emendas parlamentares, dos cargos em comissão e das supostas propinas.

Para sair disso, não basta desmoralizar aqueles atores, derrubar suas máscaras. Precisamos assumir responsabilidades, agir apontando o futuro, seguir os exemplos do padre Júlio Lancelotti.

Precisamos ampliar o número de pessoas comprometidas com discussões sobre o mundo pós síndrome, sobre o que virá quando superarmos esta fase, e sobre o papel que caberá a todos, tão logo acabe o pesadelo.

Se trata de fortalecer os grupos que operam pela conscientização da nação, que apontam caminhos para recuperação da credibilidade das instituições, do auto respeito, da soberania. Se trata de anunciar horizontes relacionados a um governo de verdade, comprometido com o enfrentamento das crises, com a recriação dos empregos, com a superação da fome e com a volta dos estímulos à inclusão do povo, entre os agentes de solução aos problemas nacionais.

Está em jogo a recuperação da confiança nos brasileiros e no contrato social estabelecido desde a Constituição Cidadã de 1988. Se trata de todas aquelas coisas que dependem do povo na rua, superando o ruído dos mantras que nos enojam e envergonham, cantando outras músicas, em outro tom.

Cantando Nei Lisboa.

Ele não nos deixa esquecer que o fascismo precisa ser enfrentado de pronto, com saúde, trabalho, educação e participação. Sem isso o fascismo deixará esta gente ignorante fascinada, e face a nada.

 

Para quem prefere escutar a ler, acesse aqui esta coluna em áudio.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko