Rio Grande do Sul

Especial Religiões 

“A batina, a bíblia debaixo do braço ou cabeça raspada não garantem espiritualidade”

Para Monja Kokai as religiões têm que reforçar discursos que promovam e apontem caminhos para uma sociedade mais justa

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O Budismo é uma religião não-teísta, o que aumenta nosso compromisso e responsabilidade com o que pensamos, dizemos e fazemos na trama da vida na terra", afirma Monja Kokai - Arquivo Pessoal

Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19? O que líderes religiosos pensam destes tempos que estamos vivendo? Estas e outras respostas buscamos neste Especial Religiões, onde vamos entrevistar lideranças religiosas das mais diferentes matizes, do espiritismo à matriz africana, da igreja luterana ao budismo. 

O Budismo chegou ao país junto com a imigração japonesa, em 1908. Segundo dados do censo brasileiro de 2010, há atualmente no Brasil 243.966 praticantes do budismo. Essa semana o Brasil de Fato RS conversou com a monja zen-budista, Kokai Eckert Sensei (Monja Kokai) sobre Budismo e o momento pelo qual o país atravessa. Batizada com o nome Vania Isabel Eckert, foi ordenada pela Monja Coen no ano de 2009 e, desde 2017 é sua discípula transmitida. Finalizou sua formação realizando Zuise no Japão, em 2019, quando oficiou cerimônias e liturgias nos mosteiros sedes Eihei-Ji e Sojiji. 

Formada em Psicologia pela Unisinos em 1987, é especialista em Sociologia da Família e tem formação em Psicologia Social e de Grupos pela Associação de Psicologia Social Internacional – Buenos Aires (APSI). Também é membro do Fórum Inter-religioso e Ecumênico do RS e do Grupo de diálogo inter-religioso da Unisinos e presidenta do Conselho Religioso do Viazen-RS. Ainda é coordenadora do Centro Budista Zen Vale dos Sinos, na cidade de São Leopoldo, onde também trabalha como Psicóloga Clínica desde 1987. 

Como orientadora da prática religiosa no Zen Vale dos Sinos, ela ensina o budismo, através de palestras, aulas e mini-cursos. Além de promover e coordenar retiros de meditação. Em função da pandemia e do necessário isolamento, tem realizado lives diárias, quando ensina a meditação zazen e traz para os dias atuais os antigos ensinamentos do Buda, na missão de contribuir para uma sociedade que valoriza Direitos Humanos, Cultura de Paz e Meio Ambiente, pilares da Ordem Religiosa Sotoshu, do Japão, a qual pertence. 

Conforme explica, o Budismo é uma religião não-teísta, o que aumenta o compromisso e responsabilidade com o que se pensa, diz e se faz trama da vida na terra. Para ela as religiões têm a responsabilidade de ser contrapontos, denunciando e reforçando discursos que provoquem e apontem caminhos para uma sociedade mais justa e pacífica. "Mas sabemos que isto nem sempre acontece. Da minha parte, procuro levar luz e esperança em nome da confiança na vida, que se renova a cada ciclo de destruição”, aponta. 

Confira abaixo a entrevista completa 

Brasil de Fato RS - A partir da experiência com sua comunidade, qual a avaliação da situação pela qual passa o pais, no contexto social e político?

Monja Kokai - A comunidade de praticantes ainda não está se encontrando presencialmente, assim nossas atividades e encontros são realizados de forma on-line. É assim desde março de 2020. A pandemia somente agravou o impacto do desmonte do Estado de bem-estar social e de políticas públicas de distribuição de renda, cortes em saúde e educação. Os resultados disso pode-se perceber em todos os setores da sociedade. Somente alguns setores privilegiados se beneficiaram, o agronegócio e o sistema financeiro, por exemplo. 

O que já vinha sendo precarizado desde o golpe de 2016, só foi piorando. E o povo sente na carne. O primeiro impacto foi o Brasil voltar para o mapa da fome, o aumento de moradores de rua, a violência, os feminicídios, desemprego, a perda dos direitos trabalhistas... Abandono e desalento. Os membros da comunidade que eu oriento, geralmente compartilham um olhar semelhante, no que diz respeito às desigualdades sociais e ao sofrimento imposto a grande parte da população ao serem privados de uma vida digna, com segurança alimentar e acesso à saúde e educação de qualidade. Um olhar que acredita que que nossa tradição religiosa – Zen Budismo – possa contribuir com uma sociedade mais justa, a partir das próprias orientações de nossa Ordem Religiosa que busca o engajamento com Direitos Humanos, Cultura de Paz e Meio-Ambiente. 


"O Budismo é uma religião que aponta a buditude para dentro de si, é conhecer a si mesmo, conhecer como funciona e mente humana" / Arquivo Zen Budismo Vale dos Sinos

BdFRS - Costuma-se dizer que viver é um ato político, a religião, a espiritualidade também seria?

Monja Kokai - Sim, viver é um ato político. Apesar disso, muitos resistem em ampliar a visão e a consciência disso. Inclusive no Brasil tem um ditado que diz que futebol, religião e política não se discute. Esta ideia somente mantem a alienação. Discutir, problematizar, esse confronto de ideias é necessário. No fundo existe o medo, que é manipulado para que as pessoas sejam passivas, dóceis e alienadas. Medo que setores de determinadas classes sociais “despertem” e assumam o protagonismo de sua história. 

As religiões institucionalizadas podem estar à serviço da libertação ou da opressão. A História da civilização foi marcada por momentos onde não havia separação entre a Igreja e Estado. Atrocidades aconteceram. Hoje vivemos um Estado laico que precisa avançar muito. Temos a bancada da bíblia ou a bancada evangélica, com seu projeto de poder e que mantém parte da população seguidora de postulados questionáveis com a promessa de alívio de sofrimento e prosperidade. 

Religião e espiritualidade, no meu entendimento, são coisas diferentes. Religião é uma instância da sociedade que participa da vida política de determinada sociedade (cidade/estado/país). É um grupo social que integra a Pólis. Já espiritualidade é um fenômeno que se manifesta na verticalidade do sujeito e, para elevar-se espiritualmente, não há necessidade de pertencer a uma religião. Depende mais de Inteligência emocional, como empatia, sensibilidade, compaixão e sabedoria. 

A batina, a bíblia debaixo do braço ou cabeça raspada não garantem espiritualidade. A velha benzedeira ou o xamã dos povos originários podem ser seres mais espiritualizados que àqueles vinculados a uma ordem religião. 

O Budismo entende que se preparar para morrer, paradoxalmente é estar preparado para viver. É perceber a impermanência e transformação em tudo que há, com mais presença e contentamento, mesmo em momento de crise e adversidades.

BdFRS - Qual é o papel da religião e da fé diante do que estamos vivendo?

Monja Kokai - Acredito que as religiões têm um papel importante na vida social. Devem ter o compromisso de defender os pobres e desvalidos, apontar as injustiças sociais, atuar para transformar a realidade, num esforço conjunto com a sociedade civil. Ser a voz dos oprimidos. Às lideranças religiosas, eu espero um papel ativo no sentido de estimular seus devotos a pensar a vida em sociedade, também da perspectiva de defender políticas públicas, indo além da prática de caridade, trabalhos voluntários e assistenciais, que tem um caráter mais emergencial. Isto eu espero das religiões. 

Quanto ao que esperar da fé? Meus ideais de fé têm a ver com os preceitos budistas e com os votos que fiz – de ajudar todos os seres a superar suas dificuldades e sofrimentos. Fé nos ensinamentos do Buda, fé nas leis da existência que Xaquiamuni Buda, o desperto da tribo dos Shákias acessou há 2600 anos atrás – que não existe nada que tenha existência própria e independente, que interdependemos, que tudo aparece e desaparece por causas e condições; que tudo está se transformando o tempo todo, ou seja, tudo é impermanente e transitório. Por exemplo, o sofrimento tem fim, assim como a alegria também. Fé que todos têm dentro de si a capacidade para despertar para a mente infinita, sábia, serena e luminosa.

O Budismo é uma religião que aponta a buditude para dentro de si, é conhecer a si mesmo, conhecer como funciona e mente humana. Assim, no Budismo não há um deus fora a quem possamos recorrer e suplicar ajuda ou colocar nosso destino nas mãos de um salvador. O Budismo é uma religião não-teísta, o que aumenta nosso compromisso e responsabilidade com o que pensamos, dizemos e fazemos na trama da vida na terra. 


"A espiritualidade para mim é alinhar mente, corpo e coração para estar afinado com a vida" / Arquivo Zen Budismo Vale dos Sinos

BdFRS - Qual é a importância da espiritualidade na vida das pessoas?

Monja Kokai - A espiritualidade para mim é alinhar mente, corpo e coração para estar afinado com a vida. Onde tudo, do mais simples ao mais complexo, é sagrado e perfeito, do jeito que é. Este é o milagre. A vida é o milagre, esse movimento incessante que não tem início e não tem fim, não tem nascimento e não tem morte. É fluidez, transformação e movimento. É apreciar a vida e adentrar Sabedoria e Compaixão. 

BdFRS - Nesse mais de um ano pandemia, o Brasil é o segundo país com o maior número de vítimas fatais. Apesar da morte ser algo inerente à vida humana, como sua tradição religiosa lida com ela, em especial nesse momento? Há lições para tirar dessa pandemia?

Monja Kokai - Penso que a pandemia chegou num momento muito delicado, com um governo de ultradireita impondo uma agenda neoliberal cruel e devastadora. Anos de campanha anti-PT, orquestrada pela oligarquia do Brasil, pela imprensa conservadora, pelos empresários e pelo Exército. E também por grande parte do Judiciário, que teve na Lava-Jato o aparato para legalizar atos antidemocráticos, com a prisão do candidato favorito do povo, preso injustamente e com isto impedido de concorrer nas eleições para o mais alto cargo da nação. 

Agora estamos sofrendo as consequências desse desatino todo. A CPI aos poucos vai expondo as vísceras de toda a corrupção envolvendo a compra de vacinas, a incompetência do Exército com seus 11.000 militares à frente de cargos estratégicos, inclusive no Ministério da Saúde. Seres pequenos que apequenam o país, contribuindo para grande número de mortes, parte delas evitáveis, não fosse o tempo que se perdeu com o atraso das vacinas, a distribuição truncada, a falta de oxigênio, as negociatas que colocam os interesses pessoais acima dos interesses coletivos. Criminosos genocidas. O povo brasileiro traz em seu histórico a opressão, golpes e violências, principalmente o povo mais humilde, negros e indígenas, protagonistas de um passado escravagista e do genocídio dos povos originários, vítimas de atrocidades que não foram criminalizadas, julgadas e reparadas historicamente. Assim o passado cai no esquecimento e os abusos continuam a se repetir. 

O Budismo cultua a memória dos mortos com reverência e respeito. Buda dizia que a morte é motivo de grande sofrimento, assim como envelhecer e adoecer. Para o ser humano é pior ainda, pois tem a consciência dessa inevitabilidade, inclusive podendo desenvolver defesas para amenizar o medo da finitude. O Budismo entende que se preparar para morrer, paradoxalmente é estar preparado para viver. É perceber a impermanência e transformação em tudo que há, com mais presença e contentamento, mesmo em momento de crise e adversidades. Para o Budismo vida-morte é o grande assunto. Tem um verso que é recitado todas as noites nos mosteiros, no final da última meditação. “Vida morte é de suprema importância. Tempo rapidamente se esvai e oportunidade de perde. Todos devem esforçar-se para despertar. Cuidado! Não desperdice essa vida!”

A vida é o milagre, esse movimento incessante que não tem início e não tem fim, não tem nascimento e não tem morte. É fluidez, transformação e movimento. É apreciar a vida e adentrar Sabedoria e Compaixão

BdFRS - Como a religião poder ser um caminho para a construção de uma sociedade mais justa e um planeta mais sustentável?

Monja Kokai - Os desafios que a civilização tem à sua frente são enormes, principalmente frente às mudanças climáticas e a concentração de poder na mão de algumas nações, condenando os países periféricos à pobreza e violência. As práticas colonizadoras ainda perduram, inclusive em nosso país, com perda de soberania. A interferência de nações poderosas em outras nações, em nome da democracia ou até de deus, através de “guerras híbridas”, causam desestabilização e ruína, um dos motivos das  migrações em massa, que mais parecem povos invisíveis que lutam por um chão onde podem pousar seus pés, quando não sucumbem aos desafios da travessia. Versões atualizadas do holocausto.  

As religiões têm a responsabilidade de ser contrapontos, denunciando e reforçando discursos que provoquem e apontem caminhos para uma sociedade mais justa e pacífica. Mas sabemos que isto nem sempre acontece. Da minha parte, procuro levar luz e esperança em nome da confiança na vida, que se renova a cada ciclo de destruição. 

Somos todos herdeiros nesse tempo e lugar, tanto da ignorância quanto das conquistas advinda do conhecimento, da ciência e dos Humanos de boa vontade!

BdFRS - Como tu vês as perseguições a alguns padres e lideres religiosos que criticam o governo Bolsonaro?

Monja Kokai - Em tempos de opressão, repressão e fundamentalismos, as perseguições aumentam. Estamos vivendo tempos de avanços de políticas de ultradireita, fascistas, mesmo se dizendo “democracias”. Na minha visão muito limitada, percebo que as democracias muitas vezes são demagógicas, pois na prática, grandes setores das sociedades são cada vez mais marginalizados. 

Eu nasci na ditadura. Como eu era muito pequena não tinha compreensão do que acontecia, mas me chamava atenção que meu pai e seu compadre, nos almoços de domingo, falavam baixinho, cochichando determinados assuntos. Depois fui entender que estavam falando sobre política e se preocupavam com os possíveis delatores. Vivi grande parte da minha juventude alienada de assuntos políticos. Por influência da ditadura, provavelmente meus pais não estimularam estas reflexões, aliado ao fato de ser mulher, fui educada para cumprir o script de casar, ter filhos, cuidar de casa, filhos, marido... mas também vivi uma época de acesso a algumas oportunidades, estudar por exemplo. Minha saída dessa latência deu-se quando fui estudar Psicologia e principalmente Psicologia Social e de grupos. 

Os Fóruns Sociais Mundiais que aconteceram em Porto Alegre também me estimularam nessa “abertura”, a militância junto ao PT que chega ao poder em 2002, época de engajamento e protagonismo. Acho que nunca vivi tão intensamente pertença e cidadania. Depois veio a Dilma. Eu curti muito esse período de 2000 a 2013, inclusive a ilusão que isto se manteria, que tudo estava seguro e garantido. Aí veio o golpe de 2016 e a destruição de todo esse legado. Não somente religiosos são perseguidos, ativistas de direitos humanos e ambientais também, quando não mortos ou condenados ao ostracismo. Mas amanhã vai ser outro dia.


"O passado cai no esquecimento e os abusos continuam a se repetir" / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS - Dentro do entendimento budista, valoriza-se muito a mudança interior para a transformação do mundo. De que forma essa mudança individual pode se transformar em uma mudança coletiva?

Monja Kokai - Gandhi dizia que nós temos que ser a mudança que queremos no mundo. As transformações devem passar por cada um de nós. Até o Buda original viveu todo um processo para sair da ignorância e ampliar sua consciência. Eu entendo que esse é o direito fundamental de cada ser humano. Deveria ser seu compromisso de vida, afinal somos seres inacabados. Sempre podemos melhorar a versão de nós mesmos. 

Mas esse é também um processo coletivo, que depende de muitos fatores. Inicialmente, deve ser estimulado dentro da família que deve ter acesso à escola de qualidade. Acesso ao conhecimento e ao pensamento crítico e reflexivo. Além do Budismo ser uma prática que busca a superação do sofrimento e da ignorância, despertando para sabedoria e compaixão, sair do eu pequeno e adentrar o Eu Universal (que inclui todas as formas de vida).

Também trabalho como Psicóloga Clínica, que tem como objetivo a ampliação da consciência. Para isso precisamos superar nosso obstáculos internos, principalmente censuras e repressões, a ignorância a respeito de nós mesmos. Ignorância sempre atravancando o caminho dos humanos. Entendo que a ignorância e ambição são os maiores obstáculos aos avanços civilizatórios, inclusive os que vivemos intensamente na atualidade como extinção em massa, mudanças climáticas, epidemias... Somos todos herdeiros nesse tempo e lugar, tanto da ignorância quanto das conquistas advindas do conhecimento, da ciência e dos Humanos de boa vontade!

*Com a colaboração de Marcelo Ferreira


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Katia Marko