“O filme [Bacurau] não é uma receita de vitória, é uma receita de luta porque o final ninguém sabe. Bacurau é um quilombo, isso não ficou distante porque nós convivemos com quilombolas do Quilombo da Boa Vista que nós conhecemos lá. O fantástico desse filme é isso, é uma história de luta que você não sabe qual vai ser o resultado, mas você sabe o que não pode mais suportar”, ressalta o ator mineiro de Belo Horizonte Wilson Rabelo, que deu vida ao professor Plínio, no filme Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Durante mais de uma hora e meia, o ator que começou como sonoplasta e iluminador nos palcos de Minas Gerais, conversou com a jornalista Katia Marko e o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, no programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato desta quinta-feira (12). Um bate-papo que mesclou as vivências e filosofias que se originam no filme, com sua trajetória de vida. Aspectos que vão desde a questão da coletividade, a importância da geografia, da natureza e de como somos ao mesmo tempo mestres e aprendizes.
Aos 64 anos, sendo 44 de carreira, Wilson tem no seu currículo mais de 45 novelas, e uma bela experiência no teatro e no cinema, ficou conhecido por grandes papéis na TV em obras como "Por Toda a Minha Vida" (da TV Globo, como Mestre Cartola), “JK”, “A Cura’, “Sete Pecados”, “Sinhá Moça”. Atualmente, Rabelo está no ar na TV na série "DOM" de Breno Silveira sobre os feitos do ladrão Pedro Machado Lomba Neto, o “Bandido Gato”, chamado Pedro Dom, onde vive o agente Arcanjo.
O ator também se prepara para a estreia de “Jogo da Corrupção”, e a próxima temporada da série original da Amazon, “El Presidente”, na qual interpreta o padre Pascual, além do filme “Pai da Rita”, de Joel Zito Araújo, ao lado de Ailton Graça, Elisa Lucinda e grande elenco. Também dá vida há 20 anos à escritora mineira Carolina Maria de Jesus, no monólogo, de sua criação, “Carolina, o luxo do lixo” adaptado do livro de Carolina Maria de Jesus, “Quarto de Despejo“.
Bacurau se você for, vá em paz
“O que acho fantástico no Bacurau é que ele serve a qualquer oprimido, em qualquer lugar do mundo, em qualquer condição. É isso que é mais assustador, falar para o mundo a partir da sua realidade, é isso que é mais fascinante no filme porque ele fala do oprimido”, analisa Rabelo.
De acordo com o ator, o filme não conta uma história do Brasil, mas sim dos brasileiros. "O Brasil está muito longe do seu povo. O povo brasileiro é um país, o Brasil é outro país, seus dirigentes são outro país, a sua elite é outro país, e ali é um país de brasileiros", destaca.
Para ele a riqueza do filme também é o seu pertencimento, sua horizontalidade, seu compromisso, participação, integridade e interação. Elementos que se encontram na obra de Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, que marcou sua vida. “Quando ele falava da relação dos adultos com os curumins, que eles descem à altura dos curumins sempre ficou na minha cabeça. A cultura é pelo que nós somos permeados o tempo todo e que nós expressamos a nossa respiração, nossos gestos, nossas palavras, nos nossos rituais. E aquele ritual de estar a altura das crianças elevou a potência do professor, que eu acho que ele é mais um escutador, um facilitador. Chegando no Nordeste você vai perceber isso, você vai aprender o tempo todo com todo mundo. Então, na verdade, acho que a cultura é isso, todos são mestres, todos são aprendizes”.
Fazendo associação com a Revolução Francesa, Wilson salienta que, enquanto no contexto francês todos perceberam juntos o inimigo comum, os brasileiros ainda não conseguem fazer isso no país. “Estamos tentando sair de um lugar que não é bom para nenhum de nós”.
Bacurau, além de trazer um quê da alegoria de Darcy Ribeiro, traz também Paulo Freire, aponta o ator, ao tratar da problematização que ensina a falar do seu mundo e também um pouco de Milton Santos, na questão da precariedade, que faz você descobrir suas necessidades, pontua Wilson. “É muito triste aquela cena da distribuição da comida vencida. Mas nós vivemos no Brasil, onde estamos precisando exatamente isso, de conseguirmos fazer uma limonada, porque não podemos esperar condições ideais. O sofrimento é matéria-prima também. A ressignificação do sofrimento”.
A geografia da natureza como motor da vida
Ainda sobre o filme, Wilson reforça a questão da imponência de sua geografia, das características físicas, sociais e percepções do Nordeste. “É como chegar na floresta amazônica. Você entende seu tamanho perto da natureza quando você chega na Amazônia, quando a floresta não está queimada. Você vê a imensidão das coisas, você desaparece, aquela geografia está te dizendo alguma coisa. O mar da Boa Viagem, em Recife, Pernambuco, agora é um personagem muito poderoso, porque você fica sentado na praia e o mar intocado, todo mundo parado, como deveria ser para a água, porque nós tratamos o mar como uma privada. Essa dimensão da natureza tem no Nordeste. A geografia lá é contundente.”
Para o ator nós não dominamos a nossa geografia, não respeitamos e não convivemos com ela. “A nossa geografia não está sendo a nossa natureza, o nosso território. E ali, a natureza era o território deles por isso eles tinham essa consciência e essa capacidade de defender o seu território. Acho que o brasileiro não tem noção do Brasil como um território que pertence a ele simbolicamente, existencialmente.”
A importância da mulher na sua vida e obra e a importância da cultura
“Hoje, por exemplo, eu já digo que sou dependente de mulher, mas na minha ideia de pensamento de machismo tóxico e provedor eu tinha vergonha. Hoje eu tenho orgulho, e sei que as minhas potências foram desenvolvidas por mulheres”. Há 20 anos o ator dá vida a Carolina Maria de Jesus, no monólogo “Carolina: o Luxo do Lixo". Segundo ele com essa experiência ele definitivamente entendeu o seu lugar como indivíduo, como homem e como pessoa em relação ao mundo feminino, mundo da mulher.
De acordo com ele, a sociedade deforma as mulheres, homens, negros, deforma o indivíduo, dai a importância do distanciamento e o olhar critico possibilitado pela cultura como um todo. “O ator Paulo José, que faleceu nesta quarta, dizia claramente que o cinema, a arte, a cultura, o teatro nos dá identidade, a gente consegue ter uma percepção comum do que nos aflige, nos toca e principalmente do que nos alimenta.”
Somos um produto do nosso tempo
Wilson também filosofa sobre a transformação que percorre o ser humano, instigado pela frase proferida no final do filme “Eu acho que ele já foi uma boa pessoa”.
“Como você pode imaginar que esse matador foi bilu-bilu um dia? Aí você vê como a gente é um produto do nosso tempo, da nossa sociedade, do que a gente ouve, do que a gente alimenta, do que a gente lê, do que a gente fala porque nossas falas reverberam na nossa própria vida”, expressa.
Ao trazer novamente a sua admiração por Darcy Ribeiro, o ator ressalta que precisamos pensar quais são os nossos modelos, do reconhecimento da sua essencialidade, do que realmente é importante.
Em sua avaliação, a pandemia deu um pouco da percepção do que é essencial na vida, do que é insubstituível, que é a própria vida e do que é substituível que é a consciência equivocada. ”Se tivermos essa consciência de reavaliarmos todos os dias podemos tirar grandes aprendizados, inclusive de buscar cada dia mais colocar o capitalismo em seu devido lugar. Não tenho nada contra o capitalismo, eu tenho contra o modelo de capitalismo que nós vivemos e como ele vai simbolizando as prioridades. Pós-pandemia vamos ter que reavaliar algumas questões e essas prioridades, do que é essencial no nosso cotidiano e as pessoas, o que nas pessoas é importante para nós.”
Wilson também fala sobre o desmantelamento da cultura, principalmente sobre o governo Bolsonaro. “A cultura está perdendo espaço no Brasil. No Brasil ela parece uma coisa menor, inútil e dispensável, agora com esse governo estamos percebendo isso. Isso é mais assustador, você pensar que a cultura é dispensável, porque na cultura você identifica o outro, e no outro é um pouco a percepção de você também. E quando você tira isso do seu radar, suas percepções sobre você mesmo estão sendo suprimidas.”
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko