Recontando histórias

Ficção literária cria "personagem cangaceiro" em meio às atrocidades da ditadura militar

Lançado recentemente, o livro "Trono de Cangalha" é uma das obras que tem o movimento como fonte de inspiração

Ouça o áudio:

Personagem fictício vive entre as memórias do cangaço e as violências da ditadura militar - Divulgação - Aroldo Veiga
Era a epidemia de cangaceiros, de banditismo, de volantes muitas vezes agindo como cangaceiros

A controversa figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi expoente de um movimento que deixou marcas na história do Nordeste: o cangaço. Há registros de atividades de cangaceiros desde o século XVIII. Eles circulavam em bandos armados pelas cidades do sertão. Costumavam saquear, invadir vilarejos, ao mesmo tempo que afirmavam combater injustiças no contexto da época.

Leia também: Poeta, dançarino e artesão: conheça o outro lado de Virgulino Ferreira, o Lampião

O auge do movimento foi no século XX, quando durante décadas rivalizaram com as volantes, polícia que muitas vezes estava a serviço de grandes fazendeiros e coronéis.

Ao Senhor Governador de Pernambuco,

(...) Eu que sou Capitão Virgulino Ferreira Lampião , Governador do sertão, fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu.

O pesquisador e escritor Robério Santos, que se dedica a pesquisar o cangaço, explica que o movimento foi retratado como uma “epidemia” naquela época. 

“Alguns jornais e pesquisadores atestaram que era uma epidemia que estava acontecendo. Era a epidemia de cangaceiros, de banditismo, de volantes muitas vezes agindo como cangaceiros, praticando crimes tão hediondos quanto os praticados por cangaceiros”, afirma.


Lampião e Maria Bonita com seus seguidores / Domínio Público

Passados mais de 80 anos desde a morte de Lampião e de seu bando, o cangaço segue como fonte de inspiração para novas histórias. O movimento inspirou o escritor Haroldo Veiga a criar o personagem Laércio Ramalho, protagonista do seu mais recente livro: O trono de Cangalha. 

O autor transporta a dinâmica dos cangaceiros, dos anos 1930, para as atividades de um militante político na resistência à ditadura militar entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil. 

Leia também: Ao lado de Lampião e Padre Cícero, Lula é figura mais presente em cordéis, diz autor

O personagem trafega entre o mundo urbano e o rural, sempre ressignificando as ações de seus heróis da infância: os cangaceiros. 

Sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava outros hoje ainda falam
Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

“Foi criado um personagem que nasceu nesse meio tempo e que adquire toda aquela herança psíquica do cangaço. Quando ele chega na fase adulta e vai pra capital, o livro toca nesses assuntos sensíveis, como a migração. Quando migra para a capital, nos anos 1960, ele se depara com a truculência do governo militar e aí toda aquela carga psíquica que ele adquiriu na infância, ele exterioriza através da luta armada”, conta o escritor. 

Leia também: "A visita indesejada e maldita” de Lampião no discurso do governador do RN

A obra além de revisitar elementos do cangaço, aborda temáticas sociais, como a migração, prostituição e desobediência civil, e expõe, também, o autoritarismo e a censura vividos no período dos militares.

"Ele mostra realmente o que foi a ditadura na pele de quem sofreu. Nesse sentido, as pessoas dessa geração e das gerações anteriores vai sentir um choque de realidade, porque na sentir na pele o que realmente foi a ditadura", salienta. 

Edição: Daniel Lamir