Abandono

Imigrantes dormem na rua em Boa Vista, capital de Roraima, por falta de abrigos

Desde a publicação da Portaria 655, em junho, explodiu o número de venezuelanos em busca de documentação

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A imagem acima mostra fila de imigrantes na entrada do refeitório do abrigo atrás da rodoviária - Yolanda Mêne/Amazônia Real

De abrigo a abrigo, de alojamento a alojamento, tudo o que resta à venezuelana Ivone Cabeira e ao seu filho deficiente, de 10 anos, é o relento da rua. Desde que chegou ao Brasil, vinda de San Cristóbal em junho, Ivone tenta conseguir uma vaga para dormir, mas só encontra locais cheios. Ela sabe que, por dia, apenas 20 fichas são ofertadas aos que procuram uma guarida num dos 12 abrigos ou 4 alojamentos de Boa Vista. São centenas, talvez milhares, de imigrantes que continuam chegando. E a fila só cresce. Ainda assim, a venezuelana não desiste.

“Morar na rua ainda é melhor do que viver lá”, diz Ivone, 44 anos, ao ser abordada pela reportagem da Amazônia Real. Sentada na calçada observando o pôr do sol em frente ao abrigo Pricumã, situado no entorno da rodoviária da capital de Roraima, ela relata que nada mudou no cenário socioeconômico da Venezuela. “A fome, a pobreza continua na mesma situação. Não temos outra alternativa a não ser deixar nosso país. Aqui, mesmo sendo difícil, ainda consigo comer e alimentar meu filho.”

Venezuelanos imigrando para o Brasil não é uma novidade, sobretudo para os estados da região Norte. Mas desde 23 de junho, com a publicação pelo governo federal da Portaria nº 655, o fluxo de imigrantes disparou. A nova norma abre possibilidade para a regularização migratória e a adoção de medidas de assistência emergencial para acolhimento dos imigrantes. Os abrigos e alojamentos fazem parte dessa nova orientação.

“Todos nós estamos em situação de vulnerabilidade, mas não estamos tendo nenhum tipo de assistência do governo. Não sei por que ainda não consegui uma vaga. Meu filho é deficiente (portador de deficiência auditiva)”, explica Ivone, que acredita que sua situação deveria ser encarada como uma prioridade. “Apresento os documentos médicos do meu filho, mas só falam que tenho que esperar, pois os abrigos estão cheios. É muito difícil viver na rua com ele. Aqui perto da rodoviária, os militares dão comida, mas às vezes não dá para todo mundo. Quem consegue come, quem não consegue passa a noite com fome.”

Com um olhar cansado, mas esperançoso por uma vida melhor, Ivone revela que deseja conseguir uma “interiorização”. Significa que, assim que puder, ela e o filho buscarão outro estado para viver. “Eu quero seguir em frente, já deixei muita coisa para trás, minha casa, minha família. Estou tentando uma vaga para sair de Boa Vista. Aqui é um bom lugar, mas preciso seguir em frente”, relata.

Abrigos lotados


Posto de Triagem em Boa Vista / Yolanda Mêne/Amazônia Real

A Operação Acolhida, coordenada pelo Exército, disponibiliza 12 abrigos em Boa Vista para migrantes e refugiados venezuelanos e apenas 1 em Pacaraima (RR), na fronteira com o país vizinho. Há ainda 2 alojamentos em Manaus, 1 em Boa Vista e outro em Pacaraima, A taxa de ocupação dos abrigos é de 88%, enquanto a dos alojamentos é de 71%. “Em números absolutos, a capacidade total de abrigamento é de 7.769 e a dos alojamentos é de 4.033. Atualmente, há 6.844 venezuelanos residindo em abrigos e 2.860 nos alojamentos da Acolhida”, diz a nota do Exército.

Questionada pela reportagem sobre as condições de vida dos imigrantes que se encontram na rua, como Ivone e seu filho, a Operação Acolhida informa que aqueles que querem ser interiorizados são encaminhados a abrigos ou ao Posto de Recepção e Apoio, uma espécie de albergue ao lado da rodoviária de Boa Vista. “Nesses locais, os migrantes e refugiados têm acesso a moradia, alimentação, banheiros, lavanderia, assistência em saúde, segurança, entre outros benefícios”, acrescenta a nota.

A luta pela regularização


Carlo Triva, radialista venezuelano / Yolanda Mêne/Amazônia Real

“A primeira coisa que fiz foi tirar meus documentos. Não sou ilegal, sou um cidadão como qualquer outro. Faz 20 dias que cheguei no Brasil, agora estou na rua. Mas estou lutando para tirar minha carteira de trabalho para conseguir um emprego digno”, diz, com esperança, Carlo Triva, de 35 anos, que veio de Porto del Cruz, na Venezuela.

Assim como Carlo Triva, muitos imigrantes que chegam ao Brasil tentam a regularização no país. Desde junho, mês em que foi publicada a Portaria 655, a Operação Acolhida já realizou 20.720 atendimentos para a obtenção de documentos nos Postos de Interiorização e Triagem da Acolhida, sendo 12.325 em Pacaraima, 6.258 em Boa Vista e 2.137 em Manaus. 

Os atendimentos recentes representam uma demanda de quase um quinto desde que se intensificou esse processo migratório. De março de 2018 até agora, já foram emitidas 106.689 solicitações de refúgio e 152.476 pedidos de residência temporária em território nacional

Assim que chegou em Pacaraima, Triva conseguiu tirar seu CPE e o protocolo de refúgio, mas conta que o processo foi lento. “Dormi umas três noites na porta do posto de triagem. Os militares não dão senhas, apenas de forma verbal. Tem muita gente em Pacaraima querendo tirar seus documentos para vir para Boa Vista, mas os que não conseguem estão vindo sem documentos”, conta.

No início de junho, apenas 80 pessoas eram atendidas em Pacaraima, segundo informa a Operação Acolhida. Atualmente, cerca de 300 imigrantes são atendidos por dia.

O homem de voz grave e forte afirma que trabalha com comunicação na Venezuela onde era radialista. Se puder, ele quer voltar a exercer a profissão que ama. “Eu trabalhava na rádio, tínhamos um programa informativo de comunicação popular. Levava informações para os jovens e para o meu bairro”, explica, “Por enquanto, estou pegando qualquer trabalho, preciso comer, não dá para escolher.”

O sonho da carteira de trabalho


Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados Brasil, na Igreja São Bento, em Boa Vista (RR) / Yolanda Mêne/Amazônia Real

Como oficial de Proteção do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, em Boa Vista, Clara Cunha tem visto cada vez mais imigrantes buscando regularização no Brasil. “A procura é muito grande e a demanda, muito maior. O número de atendimentos na Polícia Federal não é suficiente para atender à quantidade de pessoas que tem em Boa Vista”, informa à Amazônia Real.

O Serviço Jesuíta atende cerca de 500 imigrantes por dia. Na triagem, os venezuelanos são separados entre aqueles que estão em busca da primeira documentação no Brasil, de trabalho, de cursos de capacitação. Depois da publicação da portaria, os atendimentos são feitos por agendamento e foram iniciados na semana passada. “Tivemos uma grande procura, conseguimos agendar 710 pessoas que serão atendidas ao longo dos próximos dois meses, das quais 500 pessoas eram documentação pela primeira vez”, afirma Clara.

Depois da regularização de sua situação no Brasil, o imigrante tem procurado tirar a carteira de trabalho. “Os imigrantes têm direitos e por isso não estão aceitando viver de forma clandestina. Isso é muito importante. Além disso, estão em busca de uma vida melhor. O número de atendimentos na Polícia Federal não é suficiente para atender à quantidade de pessoas que tem em Boa Vista”, afirma Clara. Segundo ela, chama a atenção que no público que procura atendimento há muitas mulheres, mães solos, idosos e pessoas com problemas de saúde.

Euclis Rafael Andrades, de 61 anos, que vivia na cidade de Puerto la Cruz, está tentando tirar sua carteira de trabalho. “Já faz tempo que moro aqui em Boa Vista. Já trabalhei muito de bico. Não tirei minha carteira de trabalho antes porque ninguém queria empregar venezuelanos, as pessoas acham que por sermos imigrantes não temos direitos”, afirma.

Andrades veio para o Brasil com sua única filha. Porém, há dois anos ela foi morar na Bahia. Quando questionado do por que não acompanhou a filha, ele sorri e diz: “Estou estudando, fazendo curso. Sou jovem ainda, tenho força para lutar. Meus companheiros são meus livros agora. A minha filha me ajuda como pode, e assim vamos vivendo. Ainda tenho fé de ter uma carteira de trabalho assinada aqui no Brasil, estou lutando para isso”.

“Não somos ilegais”


Moryuri Del Carmem Parra / Yolanda Mêne/Amazônia Real

Moryuri del Carmen, de 35, que morava na capital Caracas, está há um mês em Boa Vista. Para ela, o que mais importa é tirar seus documentos para seguir a vida. “Assim que cheguei aqui no Brasil, quando saí para procurar trabalho escutei muito que sou ilegal, que não podem me ajudar. Isso me machucou muito, mas estou aqui para seguir, para avançar em frente, não vou desanimar”, desabafa.

Na Venezuela, Moryuri trabalhava como mecânica. No Brasil, virou diarista. Porém, ela não desiste de voltar a ter um trabalho em sua área de especialização. “Eu já fui em várias oficinas. As pessoas riem e falam que não sei trabalhar com mecânica, não me dão nem uma chance”, afirma. Mesmo tendo cursos, ela ainda não conseguiu um emprego em sua área. “Quero tirar minha carteira de trabalho e ir para outro estado. Não sou ilegal, sou ser humano. Todos nós, imigrantes, somos seres humanos”, finaliza.