José Gabriel Venâncio tem pouco mais de 50 anos. Começou sua historia na luta pela terra no ano de 1989, na região central do estado do Rio Grande do Sul, na cidade de Cruz Alta. Ele, junto com a família e de outras famílias que não tinham terra para morar e trabalhar ocuparam uma terra na região, formando o Acampamento Cacaraí, que depois se tornou o Acampamento Pinheirinhos.
Assim começou sua luta para conquistar um assentamento de terra. Circulou em torno de dois anos, entre acampamentos no estado, na região central e depois na região sul, em torno da cidade de Bagé e região da Campanha. Vivia em acampamentos improvisados de lona e, quando eram expulsos, peregrinavam para outra região, sempre na esperança de conquistar um lugar para viver.
Em contato com a reportagem do Brasil de Fato RS pelo celular, ele nos relatou que entre os anos 1990 e 1991 houveram muitas lutas em busca de terra na região. Diversas famílias viviam o mesmo drama, até que no ano de 1992 conseguiram ser assentados no município de Piratini, na zona Sul do estado.
Conquista da terra exigiu período de adaptação
José é conhecido também como "Seu Bílio". Ele e sua família fazem parte, desde 1992, do assentamento Conquista da Liberdade, situado na zona rural de Piratini. Recorda que o período que chegaram na região foi muito complicado. Além da questão imediata da sobrevivência, da moradia e da alimentação, a adaptação do clima também gerou dificuldades. Ele lembra que era época do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e que a negociação era bastante difícil.
"Tivemos um período de muitos conflitos. Nosso estado também era um governo comprometido com o projeto da direita. Mas na pressão saiu o nosso assentamento. Levou um tempo até as famílias se adequarem à região", conta. Seu Bílio menciona que a região impõe uma dificuldade com relação a um período de plantio que é mais curto, devido à acidez do solo, ao contrário do que estavam acostumados na região norte, onde os períodos mais alongados de plantio possibilitam até duas safras, dependendo da cultura.
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"Se tu erra o plantio aqui, tu passa o ano sem comer nada. Hoje já nos adequamos, conseguimos trabalhar bem. Tivemos nosso período de adaptação e hoje entendo que, na agricultura familiar, tu não pode se atracar na produção extensiva de grãos, como as commodities de soja ou só milho", explica.
Segundo relata Seu Bilio, a solução foi diversificar a produção, produzindo as sementes necessárias para o plantio. Esse trabalho é hoje vinculado à Cooperativa Agroecológica Nacional Terra e Vida (Coonaterra), que faz parte da Rede Bionatur. Segundo o MST, a Rede e a Coonaterra são referências na agricultura agroecológica, principalmente quando o assunto é a produção e distribuição de sementes.
Além das hortaliças e outras culturas, Seu Bílio hoje é, também, um produtor de sementes.
"No inverno, produzimos alface, rúcula, mostarda, cebola, uma variedade grande. No verão, a gente produz abóbora, melancia, melão, milho e feijão. Essa é a diversificação que temos hoje, aqui na região."
Seu Bílio produz suas culturas na base da agroecologia, evitando venenos e agrotóxicos que possam poluir a sua terra e o alimento produzido. Além das sementes, vinculado ao trabalho na Coonaterra, também trabalha junto à Associação de Produtores Ecológicos do Assentamento Conquista da Liberdade (Apecol).
Com a Associação, ele participa de feiras de comercialização de seus produtos, há cerca de seis anos. Atualmente, tem dois pontos de feira, um no centro da cidade de Piratini, outro na BR 293. Esta ultima, relata, teve uma diminuição de vendas e público, devido à redução de movimentações impostas pela pandemia. Desta forma, a feira da estrada não está sendo realizada no momento, "até para passar este período mais brabo do inverno".
Feijão é a "menina dos olhos" da produção
A produção de feijão, como conta Seu Bílio, atualmente é a "menina dos olhos" da sua produção.
"Nós conseguimos fazer um resgate de muitas variedades de feijão. Chegamos a ter mais de 60 variedades, produzindo ele orgânico", afirma. Relata também que esse trabalho de resgate de cultivos do grão foi possível em parceria das famílias do assentamento com entidades como a Emater RS (instituição de assistência técnica e rural) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Neste caminho, se recuperou variedades que não se produziam mais na região, mas também se criaram variedades novas. Dessa forma, Seu Bilio conta que a agroecologia acabou sendo uma forma de "se adaptar na região e conseguir os meios para o sustento das famílias".
Segundo ele, o objetivo do momento é divulgar cada vez mais e seguir na comercialização dessas variedades que são produzidas por ele e outras famílias do Conquista da Liberdade. Com o exemplo de que a produção é viável, essas famílias têm organizado o evento da Feira do Feijão Orgânico, na própria cidade de Piratini.
"Nessa Feira [do Feijão Orgânico] a gente apresenta todas essas variedades, faz um dia festivo, e comercializa", comenta. "Hoje a gente consegue vender feijão, diretamente ao consumidor, para quase o estado inteiro, entre pedidos menores e maiores", afirma. Com esse feijão, alimentam também jovens que são estudantes de escolas públicas, através da venda diretamente aos municípios pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar.
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Pandemia gerou novas dificuldades para os agricultores da região
Questionado sobre as dificuldades que os agricultores vêm enfrentando com a pandemia, Bílio considera que a sociedade inteira foi atingida, todos os setores da economia, tanto no campo, quanto nos grandes centros.
"Toda a classe trabalhadora que precisa gerar renda [para sobreviver], foi atingida. A gente teve bastante dificuldades, porque tinha atividades que nós desenvolvia e tivemos que suspender para nos resguardar quando a pandemia avança demais. Mesmo no campo, tivemos que também nos isolar, as famílias ficaram mais distantes umas das outras", disse.
O costume que tinham de se reunir com as associações e cooperativas para encaminhar as atividades de produção teve que ser revisto, bem como as demais atividades presenciais.
"A nossa produção de sementes, como ela é orgânica, exige que a gente faça certificação do produto. Isso a pandemia acabou atrapalhando. Da mesma forma os eventos, não podemos fazer assim como as reuniões", comenta.
::Em Pernambuco, campanha doa 200kg de sementes crioulas de milho para plantio::
Outra dificuldade que se intensificou para os camponeses durante o período de reclusão imposto pela pandemia foi que os meios de comunicação no meio rural são mais precários, principalmente o acesso à internet. Segundo Seu Bílio, na sua região, a internet móvel só funciona em alguns lugares.
"O camponês ainda não é acostumado a usar essas tecnologias. Então, uns conseguem usar, outros não. Essa é outra dificuldade que a pandemia nos trouxe, além do cuidado a mais, de se proteger, e ter que sair menos para poder ofertar os produtos", lamenta o agricultor.
Como se não bastasse, Bílio confirma que a região tem sido atingida por longas temporadas de estiagem (quando há falta de chuvas). O período de 2020 foi um desafio para as famílias agricultoras da região. Além dos efeitos da pandemia, com as famílias sem saberem o que ia acontecer e até onde a pandemia atingiria, ainda o ano agrícola foi muito pesado, complicado pela falta de chuvas. José Gabriel afirma que 2020 foi "um ano muito brabo".
No atual momento de 2021, afirma que percebe uma certa estabilização na produção agrícola, porém, a pandemia que segue avançando e causando mortes também mantém certo nível de preocupação.
Esta é a primeira parte da reportagem com o Seu Bílio, assentado da reforma agrária no município de Piratini (RS). Na segunda parte, vamos falar mais sobre a agroecologia e sua produção e sobre os desafios para a agricultura familiar (no presente e no futuro). Acompanhe no Brasil de Fato RS.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko