Na Faixa de Gaza, o assassinato de crianças ocorre pelo disparo de armas ecologicamente sustentáveis
No mais recente ataque à Palestina, em maio deste ano, Israel matou 65 crianças, segundo levantamento da CNN. O total de mortes foi de 244. A grande maioria palestinos, como sempre.
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Na Faixa de Gaza, o assassinato de crianças ocorre pelo disparo de armas ecologicamente sustentáveis. “Somos uma empresa que opera de forma responsável e sustentável”, diz a Bae Systems, maior fabricante de armas do mundo, provedora de componentes dos caças F-18 e F-35, que despejam misseis sobre escolas, creches e edifícios públicos.
Tudo ecologicamente correto. A empresa promete zerar as emissões de gases do efeito estufa até 2030. Em seu mais recente relatório, faz 75 menções à sustentabilidade. Também faz referências à responsabilidade social empresarial, inclusão, equidade de gênero e temas ligados aos direitos humanos. Tudo como manda o figurino.
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Da fabricação de armas de guerra à sabonetes de ervas medicinais, é possível encaixar o discurso da sustentabilidade em qualquer cenário. Veja o caso da Vale, responsável pelas tragédias de Brumadinho e Mariana. Mesmo sendo um dos maiores exemplos empresariais de descaso com a vida humana, investe milhões para difundir a sustentabilidade como um dos seus “pilares”.
Ou a Braskem, que afundou bairros inteiros em Maceió, após operações predatórias de extração de sal-gema. A empresa causou danos ambientais irreparáveis e prejuízos de mais de R$ 10 bilhões. Ainda assim, permanece na oferta de ações qualificadas como ambientalmente corretas, segundo o Índice Bovespa de Sustentabilidade.
Ética simulada
O discurso da sustentabilidade está fundado em um cínico altruísmo, indolor e egocêntrico. Se encaixa em uma generosidade distanciada, docemente ajustada ao consumismo, à abundância desigual e ao sistêmico desperdício de recursos naturais.
Nessa ética não restritiva e hedonista, vende-se a imagem de uma conduta responsável. Ao mesmo tempo, dissimula-se os ataques desmesurados aos recursos naturais e às comunidades vulneráveis, como mostram os exemplos acima.
“Generosidade, vá lá, contanto que seja algo fácil e distante, sem ligação com esta ou aquela forma superior de renúncia”, escreveu Lipovetsky em “A Sociedade Pós-Moralista”.
Diz o autor: “espíritos virtuosos e bucólicos ficarão revoltados; contudo, mais respeito pela natureza equivale, de fato, a uma maior dose de artificialismo técnico-científico e a mais negócios, mais indústrias e a mais mercado”.
E nesse contexto, armas de guerra e mineração predatória se encaixam perfeitamente, pois tudo cabe na “sustentabilidade”.
Narcisismo, inanição e morte
O discurso da sustentabilidade acalenta a nossa alma inquieta e culpada, sempre suscetível à aceitação e à validação do outro.
É fácil nos apaixonarmos pelo efeito narcotizante, deflagrado pela nossa própria imagem ideal, ecológica e responsável, espelhada e festejada socialmente. Assim como é fácil nos apaixonarmos pelo nosso próprio discurso, tão carregado de boas intenções.
Ainda mais fácil é a perduração desse discurso, encerrado em ideais imaginários e confortáveis contratos, ainda que não correspondentes à realidade.
Tão belo e irreal. Tal qual o mito de Narciso, em grego Nárkissos, de onde vem “narcótico”.
Assim como Narciso definhou, alienado à própria imagem de sua beleza refletida no lago, ignorando vitais, reais e externas narrativas, definhamos nós, apaixonados pela beleza do nosso discurso ambientalmente correto.
Diante da beleza das nossas boas intenções ecológicas, relativizamos a realidade ao nosso entorno, em especial nosso próprio comportamento exacerbado, consumista, predatório.
E ao final, assim como Narciso diante do lago, estamos nós, sós, e a nossa pulsão de morte, a ignorar o próprio destino, que se anuncia dramático, por conta das mudanças climáticas, das queimadas, da desigualdade, do assassinato indiscriminado de vulneráveis.
Ignoramos o outro. Ignoramos nossa fragilidade, o mundo que desmorona, a finitude.
Essa delirante e onipotente construção discursiva da sustentabilidade não muda nada, nem a nós mesmos.
*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo