Sem as massas influenciadas pelo PT e Lula, evidentemente, é impossível derrotar Bolsonaro
O anarquismo foi, muitas vezes, uma espécie de expiação dos pecados oportunistas do movimento operário.
Ser radical contra a tirania, afoito, impetuoso e ousado contra a injustiça e estar politicamente irado contra o regime, são qualidades. São atitudes que merecem admiração. Há muitas e boas razões para ter pressa, estar zangado e desejar uma saída anticapitalista para a crise nos dias de hoje. Mas não é preciso ser intratável, sectário e ultraesquerdista para abraçar uma estratégia revolucionária.
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Dois artigos recentes deste campo, um da Federação Anarquista Cabana, e outro do MRT, recorrem ao jargão de "reformistas" para quem não concorda com suas teses. Não é um bom critério. No campo da defesa da revolução há diferentes tendências.
Estamos muito fragmentados, por variadas razões. Mas a suposição ou cálculo de que somente uma organização é revolucionária é desagregadora, e até irritativa. Autoproclamação é uma forma de ostentação, soberba, arrogância.
Ainda que os autores tenham referências teóricas diferentes, os argumentos esgrimidos são os mesmos. A influência política nas massas trabalhadoras das variadas correntes ultraesquerdistas no Brasil, anarquistas ou marxistas, é muito reduzida.
Aquelas que apresentam candidatos nas eleições são invisíveis. Nos grandes sindicatos -- ainda as organizações mais importantes dos setores organizados da classe trabalhadora --, são pouco influentes. No debate teórico-programático da esquerda, são periféricos.
Coluna | Para o Brasil só há uma saída: derrotar Bolsonaro!
Mas isso não deve diminuir o respeito. Muitos são ativistas sinceros, honestos, abnegados e, em círculos de vanguarda na juventude estudantil mais combativa e bolhas nas redes sociais, existe uma audiência.
Exercem, também, alguma influência indireta em alguns círculos anticapitalistas, especialmente, as mais "antipetistas". Suas ideias, portanto, merecem ser consideradas.
Apresentam, em resumo, cinco grandes argumentos: (a) denunciam que Lula e o PT são reformistas incorrigíveis, e não merecem confiança; (b) criticam que defender a Frente Única de Esquerda é “passar pano” para o PT e para o "eleitoralismo"; (c) acusam que a unidade na ação com dissidentes da oposição liberal é uma capitulação; (d) alertam que a defesa de um governo de esquerda com um programa anticapitalista seria “vender ilusões”; (e) e defendem que a única saída para a crise é a greve geral.
Nos cinco argumentos há um grão de verdade, mas não mais do que um grão, porque é preciso considerar as mediações.
Primeiro, sim, o Brasil precisa de uma revolução, e o projeto de Lula é reformista. Mas isso não impediu a burguesia brasileira de derrubar o governo do PT em 2016, e apoiar a prisão de Lula em 2018.
Alguém tem dúvida que Lula permanece, mesmo depois de treze anos de governos liderados pelo PT, a maior liderança popular do país? O que pensa a imensa maioria da classe não tem importância? A superação das ilusões populares em mudanças reformistas, e nos líderes que reconhecem, não é possível sem uma experiência na luta de classes. É inútil denunciar os reformistas como reformistas para massas com expectativas reformistas.
Segundo, é verdade que devemos criticar a estratégia quietista de Lula de esperar o desgaste de Bolsonaro até 2022, e defender impeachment, já. Mas quem está no poder é um governo de extrema-direita. Não é possível derrotar Bolsonaro sem a mobilização dos setores mais avançados dos trabalhadores e da juventude que mantém confiança no PT. Essa não deve ser a nossa tarefa central?
A defesa de um governo de esquerda que rompa com a burguesia não é um apoio aos reformistas, é uma exigência.
Por isso, a tática da Frente Única Operária, ou em forma de popularização, Frente de Esquerda através da mobilização impulsionada pelos principais movimentos e sindicatos é a mais efetiva. Defendê-la não é “passar pano” ou ser complacente, indulgente, condescendente com ninguém. É ter um mínimo senso das proporções e responsabilidade para tentar abrir um caminho antes das eleições de 2022.
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Terceiro, defender a unidade na ação com a oposição liberal não é uma capitulação aos inimigos de classe. Diante de um governo tão perigoso como o de Bolsonaro, explorar as brechas, fissuras, e divisões entre diferentes frações burguesas é uma tática complementar à Frente Única de Esquerda.
Se a CPI no Senado, se os juízes dos Tribunais superiores, se redes comerciais de mídia se posicionam na oposição a Bolsonaro é positivo. Mas não renunciamos à disputa da liderança da oposição, nem aceitamos esperar até 2022.
Quarto. É verdade que, eventual e hipoteticamente, quando Bolsonaro for derrotado e se Lula for eleito, um governo liderado pelo PT não assumirá um programa anticapitalista. Mas, isso sabemos nós. Falar somente para nós mesmos não adianta nada. O lugar dos revolucionários não deve ser na primeira linha da luta para derrubar Bolsonaro?
Há algum futuro para as forças revolucionárias, se elas forem percebidas pelas massas como um obstáculo no caminho da maioria da esquerda e de Lula, depois dos últimos cinco anos? A defesa de um governo de esquerda que rompa com a burguesia não é um apoio aos reformistas, é uma exigência. A luta por um programa de mudanças estruturais, e a exigência de que os reformistas assumam a defesa de medidas radicais, é a única via que permite conquistar influência para as ideias revolucionárias.
Quinto, é também verdade que a greve geral seria a forma de luta mais poderosa para encurralar o governo Bolsonaro, deslocá-lo, impedir a posse de Mourão e antecipar eleições. Mas, infelizmente, não estão maduras as condições. Até o “mundo mineral” sabe que, se fosse convocada, fracassaria, porque não teria a adesão da maioria da classe.
A rigor, hoje por hoje, nem de uma minoria. Não há uma só categoria, neste momento, em condições de realizar um dia de greve geral, infelizmente. E uma ação precipitada teria consequências desmoralizadoras. Ao tentar avançar mais rápido do que a classe está disposta, se facilita o contra-ataque reacionário e a repressão. A idealização de uma permanente disposição de luta revolucionária entre as camadas populares é uma ingenuidade.
Em resumo, dois anos e meio depois da eleição de Bolsonaro, o ultraesquerdismo ainda não se resignou com o significado das derrotas acumuladas desde 2015 e 2016, portanto, a abertura de uma situação reacionária em que devem prevalecer as táticas defensivas.
Não se preocupam em fazer uma avaliação da relação social e política de forças. Desprezam o que pensam as massas populares e idealizam uma disposição de luta imaginária.
Depois de cinco anos de perdas de direitos prevalece nos grupos “ultras” uma interpretação fantasiosa que desconsidera o peso na consciência dos trabalhadores de tudo que aconteceu. Não fosse bastante a reforma trabalhista e previdenciária, entre tantas derrotas, um cataclismo sanitário, econômico-social, político e cultural tem sido devastador.
Desvalorizam o perigo que significa um neofascista com tentações golpistas à frente de um governo de extrema-direita. Mais grave: as tendências ultras ignoram que Lula mantém autoridade, e que o principal partido de esquerda no país permanece sendo o PT. Sem as massas influenciadas pelo PT e Lula, evidentemente, é impossível derrotar Bolsonaro. E nada é mais importante.
*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo