O coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo, Guilherme Boulos (PSOL), defendeu que a oposição democrática concentre esforços para derrubar Jair Bolsonaro (sem partido) ainda neste ano e classificou como “ingenuidade” apostar em um resultado favorável nas eleições de 2022.
“O desafio é construir a mobilização nas ruas. É a construção também de uma articulação dos setores democráticos para colocar uma barreira contra o Bolsonaro. O desafio é jogar o peso que a gente tiver no processo de mobilização pelo impeachment”, afirmou em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
A estruturação de alianças e candidaturas democráticas sólidas, no entanto, não deve ser deixada de lado, na opinião de Boulos. “Mas nós temos um segundo desafio, que não é ficar simplesmente plantados preparando 2022, porque [a disputa eleitoral] pode não vir do jeito que as pessoas estão imaginando”.
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Um dos principais nomes na convocação das manifestações pelo “Fora, Bolsonaro”, o líder da Frente Povo sem Medo vê com preocupação o “clima” golpista criado pelo bolsonarismo e pela cúpula das Forças Armadas, que ameaçam romper com a ordem constitucional em caso de resultado desfavorável nas urnas.
“O Bolsonaro está montando uma milícia política, que é exatamente a milícia territorial à qual ele era ligado e sempre defendeu no Rio de Janeiro. É a turma dos clubes de tiro, são os bolsonaristas para quem ele entregou armas nas mãos e que podem sair fazendo qualquer tipo de coisa”, ressaltou.
Outro equívoco de análise, segundo o psolista, é deduzir que a popularidade de Bolsonaro se manterá em queda até as eleições. Para a liderança, a recuperação econômica pós-pandemia e o avanço da vacinação podem elevar o índice de aprovação do governo federal e até viabilizar a reeleição.
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“O maior erro que a esquerda e o campo progressista podem cometer nesse momento é acreditar em uma ideia de fatura ganha, é acreditar que as pesquisas que hoje apontam uma vantagem expressiva do Lula já dão como certa uma vitória em 2022”, avaliou.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: As pesquisas eleitorais apontam favoritismo do ex-presidente Lula em 2022. E, pelo menos por enquanto, o presidente Jair Bolsonaro vê cair sua aprovação. Nesse cenário, apostar todas as fichas nas próximas eleições é o melhor caminho?
Guilherme Boulos: O maior erro que a esquerda e o campo progressista podem cometer nesse momento é acreditar em uma ideia de fatura ganha, é acreditar que as pesquisas que hoje apontam uma vantagem expressiva do Lula já dão como certa uma vitória em 2022.
E digo isso por duas razões. Primeiro porque a situação do Bolsonaro hoje é a pior do seu governo. Tem a ver com a condução desastrosa e criminosa da pandemia, com a situação econômica calamitosa do povo brasileiro, chegando a 15 milhões de desempregados, com o país voltando ao mapa da fome, com um amplo descontentamento na base da sociedade. Ou seja, está relacionado à fotografia desse momento.
Nós não podemos achar que estamos em uma situação de normalidade democrática. A eleição do ano que vem não se trata apenas de ganhar, trata-se de levar.
Apesar do governo Bolsonaro, apesar de todo seu negacionismo e seu boicote à vacina, a tendência é que a população brasileira esteja majoritariamente vacinada até o fim deste ano, o que coloca um outro cenário para o ano que vem. Sem falar na questão da economia.
Hoje é praticamente um consenso entre os economistas que o Brasil vai ter um crescimento em torno de 5% do Produto Interno Bruto (PIB). É um crescimento que não está focado no setor de serviços, nem na geração intensiva de empregos. Ele está muito ligado ao agronegócio, que é um setor exportador e que gera menos postos de trabalho. Mesmo assim, você tem uma sensação de melhora, de saída do fundo do poço, que é onde nós estamos hoje. Ainda mais com o processo de vacinação, você tem uma retomada das atividades e do convívio social.
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Com tudo isso, é possível que a gente tenha no ano que vem o Bolsonaro mais fortalecido do que ele está hoje. Não o suficiente para ganhar do Lula nas urnas, eu acho. Porque a tragédia do governo dele é muito grande. Ele não vai abrir mão da política neoliberal do Paulo Guedes, o que poderia permitir uma saída mais consistente da crise econômica, com geração ampla de empregos. Mas aí entra o segundo fator que eu queria trazer para nossa reflexão. Nós não podemos achar que estamos em uma situação de normalidade democrática.
A eleição do ano que vem não se trata apenas de ganhar, trata-se de levar. O Carlos Lacerda, pai do udenismo no Brasil, disse certa vez sobre o Getúlio Vargas: “Nós temos que impedi-lo de concorrer. Se ele concorrer, temos que impedi-lo de ganhar. Se ele ganhar, temos que impedi-lo de tomar posse. Se ele tomar posse, temos que impedi-lo de governar".
Esse é o espírito das elites brasileiras há muito tempo. E a articulação do Bolsonaro revela uma aposta, dobrando ficha, a todo momento, em não aceitar o resultado eleitoral se ele for derrotado.
Essa questão do voto impresso é isso. Aliás, eu acho que Bolsonaro nem quer que o voto impresso seja aprovado. Alguém acha que o Bolsonaro está preocupado com a transparência da democracia no Brasil? O que ele quer é uma narrativa. Essa narrativa começa a chegar perigosamente em setores das Forças Armadas.
Nós vimos a movimentação do [ministro da Defesa, general] Braga Netto [que teria condicionado a realização das próximas eleições à aprovação no Legislativo do voto impresso, segundo reportagem do Estado de S.Paulo]. Saiu uma reportagem de que o general [recém empossado ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Eduardo] Ramos teria tido um papel de arquiteto daquela live do Bolsonaro [na qual foi questionada a confiabilidade da urna eletrônica].
Ou seja, é um cenário muito perigoso. Isso deve nos levar a entender, no campo da esquerda e da oposição ao Bolsonaro, a tática que vez ou outra é defendida por lideranças que falam: “Olha, não vamos botar todo o pé agora, não vamos desgastar o Bolsonaro. A CPI [da Covid no Senado] serve para isso. No ano que vem ele chega desgastado para perder a eleição”.
Essa tática é temerária e equivocada. Não considera a situação em que nós estamos. No fim do dia, ela é ingênua porque acredita que nós estamos em uma situação de normalidade democrática na qual não estamos. Precisamos focar os esforços agora em 2021 para evitar que a tragédia seja maior e tentar derrubar o Bolsonaro com todos os elementos que nós temos hoje.
Bolsonaro dá cada vez mais sinais de que pretende romper com a ordem constitucional, embora não pareça ter força para tanto. Como você encara o desafio vivido pela oposição de esquerda, que é jogar o jogo democrático com um adversário na presidência que não respeita as regras democráticas desse mesmo jogo?
É verdade que o Bolsonaro hoje não tem força para dar um golpe ou fazer uma ruptura institucional. Se tivesse, já teria feito essa ruptura. Mas também é verdade que setores das Forças Armadas têm dado gestos muito ambíguos. Também é verdade que o Bolsonaro tem uma infiltração nas polícias militares estaduais e que tem os seus próprios milicianos.
Defendo que a gente busque construir, justamente pela gravidade do momento, pelo objetivo central de derrotar o bolsonarismo, uma unidade do campo progressista.
O Bolsonaro está montando uma milícia política, que é exatamente a milícia territorial à qual ele era ligado e sempre defendeu no Rio de Janeiro. É a turma dos clubes de tiro, são os bolsonaristas para quem ele entregou armas nas mãos e que podem sair fazendo qualquer tipo de coisa. Vamos lembrar o que aconteceu na Bolívia em 2019. Foi um golpe miliciano que tirou o Evo Morales e botou um governo ilegítimo no poder. Então nós não podemos subestimar, muito embora hoje, de fato, ele não tenha essa força.
Eu acho que o desafio da esquerda nesse momento é duplo. Nós temos que jogar o jogo institucional. Nós temos que construir candidatura. Eu sou um defensor de que nosso campo tenha unidade, tanto em nível nacional, como em palanques estaduais. Defendo que a gente busque construir, justamente pela gravidade do momento, pelo objetivo central de derrotar o bolsonarismo, uma unidade do campo progressista. Acho que esse é um capítulo à parte. São as articulações, o diálogo entre os partidos, o debate programático, a busca da construção de unidade.
Mas nós temos um segundo desafio, que não é ficar simplesmente plantado preparando 2022, porque [a disputa eleitoral] pode não vir do jeito que as pessoas estão imaginando. O desafio é construir a mobilização nas ruas. É a construção também de uma articulação dos setores democráticos para colocar uma barreira contra o Bolsonaro. O desafio é jogar o peso que a gente tiver no processo de mobilização pelo impeachment. Mas é claro que isso não depende só de nós. Vamos ver como vai ser a retomada da CPI [da covid]. Vamos ver se surgem novas provas.
Mas eu acho que nós temos que ter uma vigilância permanente, um trabalho com o povo enraizado nos quatro cantos do país para estimular o processo de mobilização. Não tem outra saída. Apostar apenas em uma construção eleitoral normal, como se nada tivesse acontecendo e tivéssemos céu de brigadeiro no país, é um equívoco tremendo que pode cobrar caro de todos nós mais adiante.
Em maio deste ano, partidos e organizações de esquerda tomaram a difícil decisão de convocar manifestações de rua em meio à pandemia. A população respondeu ativamente ao chamado e se colocou como um ator político decisivo na conjuntura. As mobilizações poderão barrar a ofensiva antidemocrática de Bolsonaro?
Primeiro, quero reafirmar o acerto de a gente ter iniciado um ciclo de mobilizações no dia 29 de maio. Foram quatro grandes manifestações nacionais em centenas de cidades, capilarizadas pelo Brasil, com multidões sobretudo nas grandes capitais. Tivemos mobilizações como não se tinha há um bom tempo no país. Isso foi importante porque mudou a percepção da sociedade.
Aliás, foi decisivo para pautar o impeachment, que estava fora da agenda política apesar de todo o desastre. As manifestações trouxeram o impeachment de volta para a agenda política e forçaram Bolsonaro a reagir se entrincheirando, reforçando a aliança com o “centrão”, entregando os anéis, colocando o [senador pelo PP do Piauí] Ciro Nogueira na Casa Civil.
Isso tem muito a ver com a mobilização que nós produzimos nos últimos dois meses. Agora, é natural que quando são chamadas mobilizações com a intensidade que a gente chamou não haja um processo de crescimento tão vigoroso. A gente conseguiu, o que já foi um feito, manter o patamar das mobilizações nesse período.
E tem ainda a pandemia. Nós temos uma parcela minoritária da população vacinada até o momento. Muita gente - e é compreensível - decidiu não ir às ruas enquanto não estiver vacinada. Então nós temos esses fatores que embaralham um pouco o cenário.
A convocação para o dia 7 de setembro é fundamental. Vamos lembrar que antes vão ter duas datas de mobilização em agosto. No dia 11 protagonizada pelos estudantes e no dia 18 protagonizada pelo movimento sindical com paralisações em vários setores. E no dia 7 de setembro, com esse tempo, com este acúmulo, a gente tem condições de produzir grandes mobilizações no Brasil inteiro.
Edição: Leandro Melito