A Convenção Constitucional do Chile, que carrega a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna até outubro de 2022, completa nesta quarta (4) um mês.
Entre os temas urgentes de debate da Constituinte estão a utilização dos recursos naturais, os impactos da mineração, o acesso a serviços públicos e políticas que promovam igualdade de gênero.
“A primeira demanda é desprivatizar os recursos naturais, começando pela água. Chile é o único país que estabelece na sua constituição que o acesso ao recurso é um direito privado. Isso é uma aberração, ainda mais num contexto de crise ambiental”, assegura o constituinte pela região de Ñuble, César Uribe.
Além de tornar a água um bem público e universal, ele defende que sejam estabelecidas prioridades para a destinação de seu uso, começando pelo consumo humano, domiciliar, saneamento básico e em seguida para atividades econômicas, como a agroindústria e a mineração.
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No Chile, existem as chamadas “zonas de sacrifício”, nas quais a população vive sob a contaminação da mineração no ar, no solo e na água.
Dayana González, eleita constituinte pela Lista do Povo pela região de Tocopilla, no norte do país, relata que a maioria da população acaba pagando caro por água contaminada.
“O norte chileno é brutalmente afetado pelo extrativismo. No deserto, o solo é muito rico, e ele é explorado por empresas que nem sequer são daqui. Enquanto utilizam água doce para a mineração, nós tomamos água de uma usina dessalinizadora instalada a 300m de uma usina termoelétrica. Ou seja, utilizam essa água, devolvem para o mar e depois ela é tratada e enviada para o nosso consumo”, conta.
Estado plurinacional
Outra demanda histórica que a Convenção buscará atender é o reconhecimento dos povos originários que constituem o país. Cerca de 12,8% da população chilena é indígena e a maior parte do seu território, o chamado Wallmapu, está militarizado.
Lideranças Mapuche são perseguidas pelas forças de segurança do Estado e as línguas indígenas não são reconhecidas como idiomas oficiais.
Por isso, uma das propostas apresentadas pela bancada indígena é a substituição da atual bandeira do país.
“Há esperança de que essa constituição reconheça o bem comum, que criemos uma Carta ecológica e com justiça restauradora que necessitamos para poder reparar o dano que fizeram a nossos territórios”, afirma González.
A proposta elaborada pela Convenção no período 2021-2022 deverá ser submetida a outra consulta popular.
Início tumultuoso
A Convenção utiliza o plenário do Congresso chileno para seus debates e deveria receber apoio técnico de uma comitiva vinculada à presidência do país. No entanto, já no primeiro dia, a sessão atrasou horas diante da falta de espaço para receber o grupo.
“A Convenção começou do zero, sem nenhuma estrutura, norma de funcionamento ou regra instalada. Todo o processo, portanto, era mais difícil que chegar a um congresso já com uma dinâmica há anos e assumir essa dinâmica. Evidentemente, foram colocadas travas para o funcionamento da Convenção. E acho que existe uma intencionalidade do governo”, relata Uribe, também também arquiteto e ativista ambiental.
Durante a abertura dos trabalhos, movimentos sociais realizaram uma manifestação em frente ao Parlamento para celebrar a data histórica. O ato pacífico foi reprimido pela polícia militar chilena, os carabineiros. Depois do episódio, o secretário executivo da presidência, Francisco Encina, foi substituído na função de assessor do novo organismo.
Composição e funcionamento
manifestações de outubro de 2019, que reivindicavam a reforma constitucional.
A primeira declaração emitida pela Assembleia Constituinte, em 30 de julho, foi em defesa da liberdade de presos políticos mapuche e dos detidos durante asTambém foram criadas comissões internas para avançar em discussões temáticas: Ética e Orçamentos; Participação e Consulta Indígena; Direitos Humanos, Participação e Equidade Territorial; Comunicações; Descentralização, Equidade e Justiça Territorial; e de Regulamento, grupo que conseguiu elaborar um conjunto de regras de funcionamento do organismo.
Todas as comissões internas, assim como a mesa diretora seguem a regra de paridade de gênero, estabelecida na própria Convenção.
📣Comienza el trabajo de comisiones:
— Chile Convención (@convencioncl) July 30, 2021
🔹Ética
🔹Reglamento
🔹Derechos Humanos
🔹Comunicaciones
🔹Participación popular y equidad territorial
Sigue el debate 👉https://t.co/5kaJ5JsMOE y https://t.co/rqbteDThTU
A eleição dos membros da Assembleia garantiu ampla maioria de representantes do campo progressista: 27 pela lista do povo, outros 7 candidatos independentes e indígenas, 28 pela lista Aprovo Dignidade, 25 pela lista Aprovo/Frente Ampla, 15 representantes indígenas, 11 pela lista Nova Constituição e 37 pela chapa de direita Vamos por Chile.
A composição diversa ficou representada na mesa que dirigirá o organismo, com a mapuche Elisa Loncón, na presidência, e Jaime Bassa (Aprovo Dignidade) como primeiro vice-presidente; completam a mesa Rodrigo Álvarez (Vamos por Chile); Lorena Céspedes (independente); Pedro Muñoz (Frente Ampla); Elisa Giustinianovich (Aprovo Dignidade).
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As sessões são diárias e acontecem de forma presencial e online por conta das restrições geradas pela pandemia de covid-19. A proposta dos constituintes seria realizar eventos ou sessões abertas em outras regiões do país, mas apontam a falta de verba para viagens.
A Convenção Constitucional tem um orçamento equivalente a 20% dos fundos reservados para a Câmara de Deputados, que possui a mesma quantidade de parlamentares – 155 no total.
Do montante total reservado, foram gastos até o momento 2,6 bilhões de pesos (R$ 17,342 milhões). Somente a cerimônia de posse custou 450 milhões de pesos chilenos (cerca de R$ 3 milhões), sobrando apenas 34 milhões de pesos (cerca de R$ 229 mil).
De fato, uma das reclamações dos constituintes é que houve excessivos gastos do governo antes de a Convenção ser instalada. “Quase todos os contratos foram assinados antes mesmo que a Convenção fosse instalada”, denuncia Uribe.
Campanha midiática
Apesar dos avanços, a imprensa tradicional chilena publicou uma série de reportagens no último mês questionando a capacidade de trabalho dos constituintes.
As dúvidas também foram promovidas pelos membros da direita, que afirmam que a Convenção busca atravessar os outros poderes constituídos no Chile.
Dayana González afirma que os constituintes independentes já estão discutindo alternativas para lidar com a campanha midiática contrária. “Aqui quem tem os meios são aqueles que governaram toda a sua vida”, denuncia.
Uribe concorda e diz que “há uma intenção de uma classe econômica chilena de que esse processo fracasse".
Ou seja, de acordo com os independentes, a direita chilena, que fez campanha pelo “não” no plebiscito constitucional, agora tenta boicotar a convenção desde dentro.
Uma prévia das eleições
Depois que os chilenos optaram por uma maioria de independentes tanto na eleição dos constituintes como para a eleição de governadores, desacreditar esse setor da sociedade seria estratégico para as eleições de novembro deste ano.
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Enquanto se engajam nos debates, as chapas também se preparam para as eleições parlamentares e presidenciais de novembro. O presidente Sebastián Piñera encerra sua gestão com um recorde de 72% de reprovação, de acordo com pesquisa de opinião do Centro Estratégico de Geopolítica (Celag).
Gabriel Boric (Aprovo Dignidade) será o candidato pela esquerda e Sebastián Sichel (Chile Vamos) é o nome já escolhido pela direita. Ainda assim, outras candidaturas podem se inscrever.
Para parte dos constituintes da Convenção, esse processo eleitoral de novembro e o próximo ano dos trabalhos da proposta da nova Carta Magna serão decisivos para a possibilidade de abandonar o atual modelo econômico neoliberal do país. “Nós necessitamos de um modelo econômico que nos projete mais vida. Este é o momento que devemos colocar toda nossa força para avançar”, garante Dayana González.
Edição: Arturo Hartmann