Crise e arte

Em novo livro, poeta Maurício Simionato apresenta "testemunho poético" do caos destes tempos

"O Arado de Odara" é a terceira obra do autor, que mostra engajamento social e capta momento atual em 92 poemas

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Maurício Simionato é jornalista e poeta e lança oficialmente no próximo dia 1º seu terceiro título, "O arado de Odara" - Divulgação

Quais as arestas entre crise, caos e arte? Para o poeta Maurício Simionato, as três coisas se misturam, ao mesmo tempo em que instigam aqueles que veem na desordem social e política do momento uma oportunidade para produzir arte e inspirar reflexões em outros inquietos que assistem a este momento histórico do Brasil.

É em meio a esse debate que nasce o novo livro do autor, O Arado de Odara – uma distopia tropical, que Simionato descreve como “testemunho poético” destes tempos.

Terceiro trabalho literário do poeta, a obra traz 92 poemas que passeiam por temas recorrentes do momento, como as questões geradas pela pandemia, a crise institucional, a morte e a sobrevivência, tudo devidamente captado a partir de um olhar sensível que convida o leitor a uma experiência de engajamento social por meio da arte poética.

Em conversa com o Brasil de Fato, Maurício Simionato trouxe detalhes sobre o processo de inspiração que gerou o novo trabalho. Confirma a seguir a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Você já alçou outros voos na área da literatura. Em 2012, lançou o livro Impermanências; cinco anos depois, veio o titulo Sobre Auroras e Crepúsculos; e, agora, você apresenta esse título, com uma interessante sonoridade, O Arado de Odara – uma distopia tropical, publicado pela editora Patuá. O que você traz de singular, de diferente nesse trabalho de agora?

Maurício Simionato: Este livro tem um contexto histórico da nossa vida da humanidade e foi finalizado em 2020, então, pegou todo o início da pandemia. Ele é bastante atravessado pelas questões relacionadas à pandemia, de silenciamentos, e também pela questão política que a gente passa de negacionismo, ódio, fake news.

Então, ele passa essa realidade à flor da pele. A poesia se transforma nesse dizer que retrata este momento de pandemia que a gente vive, de muita mudança social, de desigualdade social aumentando. Este livro é um testemunho poético desta época.

E eu acho que escrever poesia é persistir na existência. Ele tem essa resistência, ele traz a persistência em existir. Apesar de tudo, eu vou continuar escrevendo poesia, vou continuar fazendo arte, e ele é um meio de mostrar que a gente está resistindo. Esta época é de resistência.

Sua obra se debruça sobre diferentes temas do momento, como isolamento, quarentena; morte e sobrevivência; o debate sobre a impunidade e, ao mesmo tempo, a leniência das instituições brasileiras, uma discussão muito presente neste momento de crise, etc. A Amanda Vital, poeta e editora, classificou seu novo livro como um “manifesto socio-político-poético da atualidade”. Você se sente contemplado nessa descrição? Foi isso que você quis atingir quando traçou o horizonte desse livro?

Sim, eu testei a potência da escrita poética ao máximo diante deste quadro que a gente passa de negacionismo, de genocídio. Eu testei ao máximo isso. E não foi uma intenção de fazer um manifesto, mas ele acabou se transformando num manifesto porque os poemas têm características que se encaixam em dois capítulos, o Dos Trópicos e o Distópicos.

Então, ele acaba se transformando num manifesto no sentido de que há um protesto ali, há um sentido de a gente tentar se reposicionar. Tem uma frase do Drummond em que ele faz uma pergunta: é possível a gente fazer uma revolução sem pegar em armas? Eu acho que sim.

Eu respondo isso a Drummond. É com poesia, fazendo versos, fazendo arte. Então, nesse sentido, o livro se transforma, sim, num manifesto político, social. A Amanda está perfeita na avaliação.

Alias, agradeço à poeta, que escreveu a orelha do livro de forma perfeita, e aproveito pra agradecer ao pessoal da editora, a Patuá, que conseguiu transformar esse manifesto, o conceito visual do livro num manifesto realmente. Então, eu gostei muito do trabalho que o pessoal fez da edição, o Edu Lacerda, o pessoal da Patuá. Eles conseguiram transformar esse manifesto poético numa obra real, que virou o livro.

A gente precisa ao máximo fazer poesia. Tem gente que não gosta, acha que é coisa de vagabundo. A gente está muito neste momento e a gente tem que provocar cada vez mais, tem que fazer poesia, publicar o máximo que puder, fazer arte, fazer música, ir contra essa maré, porque a gente vai passar desta fase, que já está quase acabando.

Vamos nos livrar desses negacionistas que estão por aí, e minha poesia vai nesse sentido de enfrentamento mesmo.

A gente tem vivido um cenário nacional em que cada vez mais se pulverizam iniciativas artísticas de contestação ao desmonte do país e mais especialmente ao contexto de retirada de direitos e de ataques à democracia. Tem artistas, seja do mundo da música, da dança ou da literatura, que preferem se manter um pouco mais alheios a esses debates, pelo menos em termos de evitar os holofotes. Mas você, pelo visto, percorre um caminho diferente porque bebe na fonte dessa turbulência política pra produzir arte e as suas reflexões. Você consegue de alguma forma imaginar o seu trabalho de uma forma dissociada de tudo isso?

Não consigo. Acho que o artista é chamado a se manifestar. Acho que, no momento em que a gente vive, quem é neutro está do lado do errado, está dando apoio pra essa ultradireira, pro neofascismo.

Quando você fica neutro numa situação extrema dessa, em que a gente vê o neofascismo ganhando as ruas e as redes sociais, com ódio, com fake news, você está ajudando esse lado que está aí tentando destruir as coisas, destruir o que foi feito no país neste tempo todo, as políticas sociais.

A gente percebe – está nas ruas – o povo passando fome, os óbitos, o Brasl regredindo. Como a gente vai ficar neutro numa situação dessas? Mais de 550 mil pessoas já morreram porque a vacina não foi comprada como deveria ter sido. Houve um completo descaso. É impossível a gente ficar neutro numa situação dessas. Não tem como. Tem que se posicionar mesmo.

Falando um pouco sobre os seus versos, tem um trecho do capítulo 1 que você intitulou como Amar à revelia, ou seja, “amar, apesar de”. Com base nisso, eu pergunto: neste cenário social de tanta disseminação de ódio, de tanta intoxicação política, onde é possível, pra você, na condição de poeta, perceber a manifestação do amor?  Onde você buscou inspiração neste cenário caótico para perceber o amor?

A gente vê muitas pessoas com medo, né. Eu vejo isso e vejo que fazer arte também é rechaçar o medo. Fazer poesia é rechaçar o medo, e a minha poesia tem esse fundo de trazer o sonho, a esperança, apesar de.

Eu fiz questão de não deixar o amor de fora da minha poesia. A gente precisa mesmo falar sobre amor e passar amor o máximo possível, porque só assim a gente vai conseguir resistir. Sem amor a gente não consegue resistir, e sem arte também não.

Então, eu fiz questão. É um manifesto político-social, mas o amor também é uma forma de manifestação política e social. Então, dando amor ao próximo, a gente consegue ajudar as pessoas a saírem deste buraco em que a gente se meteu.

E aí eu falo não só do amor [no sentido de] relacionamento, mas falo do amor no sentido humanitário mesmo, de a gente se sentir solidário e tentar ajudar o próximo. É nesse sentido também, então, vamos amar à revelia. Esse é o ponto também do livro. Ele traz esse corte do momento em que a gente está passando, mas traz também a esperança. Esse poema é um deles.

Tem outros poemas em que eu falo também de amor. Ele perpassa todo o livro. É como se eu quisesse dizer que, sem amor, a gente não vai conseguir sair dessa. Eu tentei juntar a revolta com o momento que a gente está passando e também dar esta mensagem de amor, de esperança, de que há sonhos possíveis a serem concretizados.

Estamos passando por um momento olímpico, que está trazendo a emoção de novo, aflorando essa emoção de a gente voltar a sentir o próximo conquistando uma importante medalha brasileira. Isso também é uma forma de amor, é a gente gostar e se sentir feliz pela realização dos nossos irmãos.  

E como é possível convencer e fisgar o leitor pra que ele seja capaz de perceber esse mundo sensível – que é tão presente na sua perspectiva de mundo quando você fala e escreve – pra que esse leitor também sinta a manifestação do amor, apesar do peso e da intoxicação emocional destes tempos? Qual é a estratégia?

É um trabalho de formiguinha. A gente vai passando pra um amigo aqui, aí o outro amigo fala. A gente fica o tempo todo falando em poesia, em novos autores que vão surgindo no Brasil o tempo todo. Nas redes sociais a gente consegue divulgar um pouco mais poesia.

Então, a gente junta outros autores, grupos, oficinas. Isso a gente percebe que a arte está em ebulição mesmo no Brasil. Vários poetas estão se juntando em grupos e fazendo poesia, saraus, antologias poéticas, revistas digitais de divulgação de poesia. Então, é um momento também de a gente mostrar que tem força e vai continuar resistindo com poesia.

Então, fisgar esses leitores é um trabalho de formiguinha, com alguns amigos. Tem vários concursos de poesia, várias revistas. Eu tenho tentando publicar o tempo todo em antologias poéticas que estão abertas e participar de programas, oficinas, cursos. Cada vez mais tentando aprender e evoluir em relação à poesia.

A gente vai, aos poucos, cada um conquistando um leitor novo e mostrando a importância da poesia pro Brasil. Historicamente, você vê que vários grandes autores acabam sendo marcantes na história da humanidade, acabam configurando a época em que eles viveram. E esta época [de hoje] vai ter um registro histórico na poesia muito forte. As futuras gerações vão ler os poetas que estão fazendo poesia hoje e vão entender um pouquinho mais o que a gente está passando.

Edição: Leandro Melito