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Deus está morto, mas ainda é o culpado

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Em épocas anteriores à experiência egípcia, o culto era à Deusa - Museu de História Natural de Viena/AFP
Se algo no monoteísmo pós Idade Antiga sobreviveu aos séculos, foi o machismo e a misoginia

O monoteísmo foi inventado no Antigo Egito, por Amenófis IV, o mais esquisitão dos faraós. Antes dele, o panteão era povoado por inúmeras divindades, dentre elas Rá, Isis e Osiris, até hoje muito lembradas. Pelas mãos de Amenófis IV, todas essas divindades foram preteridas pelo impopular deus Áton, que só fazia sucesso junto à nobreza.

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Em honra à Áton, o faraó mudou o próprio nome para Aquenáton. Casou-se com duas de suas próprias filhas e promoveu uma das maiores confusões teológicas da história. Para impor Áton, patrocinou perseguições, assassinatos e repressão religiosa em larga escala, em todo Vale do Nilo.

A similaridade com a atualidade não é mera coincidência.

O monoteísmo de Aquenáton durou 17 anos, tempo do seu reinado. Após a morte do faraó, o sucessor Tutancâmon restabeleceu o politeísmo. Os múltiplos deuses voltaram, mas a ideologia que nasceu com o monoteísmo permaneceu e fez sua própria trajetória de caça às bruxas.

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O patriarcado predatório

Ainda hoje se observa violência, discriminação, homofobia, perseguições, proibições e assassinatos cometidos em nome de um Deus criado à imagem e semelhança dos homens. A lista de perversidades é longa, com destaque histórico para a violência contra mulheres. Se algo no monoteísmo pós Idade Antiga sobreviveu aos séculos, foi o machismo e a misoginia.

O monoteísmo é fruto do patriarcado, onde Deus é homem. A natureza se separa da cultura e o divino se torna fruto do binômio espírito/razão.

Em épocas anteriores à experiência egípcia, o culto era à Deusa. Imagens encontradas pela arqueologia retratam profunda simbiose entre humano e natureza. Estudos de J. Campbell relacionam a fé na Deusa como entidade transcendente, adorada sob vários nomes, mas sempre no feminino e com o poder de atuar sobre a vida e a morte.

Com o avanço do patriarcado sobre a fé, as estruturas de controle social se apropriaram com maestria dos jogos do poder divino, fundado no mais brutal dos afetos: o medo. Um medo continuamente produzido, incansavelmente mobilizado, cotidianamente renovado.

As religiões monoteístas modernas tiveram papel fundamental no processo de desconexão entre o ser humano e o mundo natural. Instituíram um antropocentrismo dogmático e comercializam a suprema mercadoria: a ideologia de que somos “privilegiados”, “filhos de Deus”, “imagem e semelhança”, “superiores à natureza”.

É uma eficiente relação de duplo vínculo que mistura amor e ódio, perdão e vingança, afeto e agressão. Diante desse Deus, sempre estaremos “errados”, independente do comportamento. A eterna prisão à fantasia que nos faz arrastar medo e culpa por séculos sem fim.

Mudanças climáticas

Medo e culpa, mas no final tudo dará certo. O horizonte de expectativas nos presenteará com a ressureição. Ou, na pior das hipóteses, com um séquito de virgens paradisíacas, treinadas para a submissão eterna... aos homens, obviamente.

Em nome dessa crença, estamos autorizados a perseguir o diferente. Torna-se legítimo derrubar uma árvore que demorou 50, 100, 200 anos para crescer. Afinal, somos superiores. Dominamos a natureza. Tudo podemos. Somos deuses sobre a Terra.

Tal ideologia, desconectada dos ciclos orgânicos de reprodução do mundo vivo, ignora a cosmologia de atenção e cuidado com a natureza e seus aspectos místicos, míticos e curativos. Não à toa, Davi Kopenawa nos denomina como “povo da mercadoria”, em contraposição à cosmovisão ameríndia; enquanto Ailton Krenak declara, em “Guerras do Brasil.doc”: "Eu não sei por que você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra".

Talvez tenhamos que fritar, sob a inclemência das mudanças climáticas, para entender o tamanho da encrenca em que estamos metidos. Porque o Deus do bem, do belo e do verdadeiro, este morreu faz tempo. “Nós o matamos”, escreveu Nietzsche. “Você e eu, somos todos seus assassinos”.

Edgar Morin escreveu um livro chamado “A Via para o Futuro da Humanidade”. Em dado momento, analisa o que chama de “a grande disfunção do Ocidente”: o monoteísmo antropocêntrico e etnocêntrico que nos descolou da natureza. E ainda inclui Descartes, que decretou ser o homem o único indivíduo do universo, “mestre e dominador da natureza”. Santa arrogância.

Guerra contra a natureza

Nessa toada, chegamos até aqui. No Brasil, desmatamento descontrolado. Na Europa e na Ásia, enchentes, colapsos climáticos como os que nesse mês ocorreram na Alemanha e na China.

Morin defende que seja ressuscitada a relação do homem com a natureza. Restabelecer a relação de vida e de morte com a biosfera, de modo que possamos religar nosso destino ao planeta.

Repensar tudo sobre nós mesmos. Uma ampla reforma no pensamento e na concepção de mundo. Uma metamorfose completa e integral.

Nietzsche enlouqueceu antes de morrer. Não teve oportunidade de acompanhar a ressureição de Deus, que renasceu como um pastiche de si mesmo, um deus-mercadoria acoplado ao desenfreado consumismo em que estamos mergulhados.

Em um mundo de aparências e superexposição, no qual tudo é coisa, o consumo desenfreado é nosso melhor indicador de que, talvez, não tenhamos mais tempo para a metamorfose. Será?

 

*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo