Coluna

Uma viagem pela América Latina: mudanças e processos abertos por todo o continente

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Fazendo-nos recordar a certeza enraizada no que dizia Salvador Allende durante o golpe de Estado perpetrado pela CIA contra ele em 1973: “A história é nossa, e os povos a fazem ” - Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
A América Latina e o Caribe continuam buscando cenários de encontro e articulação

Por André Cardoso* e Marcelo Depier**

 

Desde que o Instituto Tricontinental surgiu, temos buscado entender a dinâmica do capitalismo contemporâneo a partir das necessidades dos movimentos populares e das organizações políticas. Essa tarefa é realizada por meio de estudos e pesquisas aprofundados e também pelo acompanhamento constante da conjuntura, observando as movimentações do imperialismo e a luta de resistência dos povos.

Na América Latina produzimos bimestralmente um informe de conjuntura da Nuestra América, no Observatório de Conjuntura da América Latina (OBSAL) que é coordenado pelo escritório da Argentina e tem a parceria do escritório do Brasil. O relatório aborda os principais acontecimentos ocorridos na região no período.

Na coluna desse mês, gostaríamos de apresentar um resumo do nosso último boletim, referente aos meses de maio e junho de 2021, fazendo uma viagem com vocês pelo nosso continente: saindo do alto da Cordilheira dos Andes, descendo para o Cone Sul, passando pela Mesoamérica e chegando nas Ilhas do Caribe.

O intuito é provocar os leitores e leitoras desta nota a se aprofundarem no estudo e no acompanhamento da conjuntura do nosso continente pelos relatórios do OBSAL.

Durante os meses de maio e junho, as bases do continente e do mundo continuaram se movendo em meio à disputa global entre o primado da vida e os desígnios do capital. A multiplicidade de eventos que relatamos em nosso último informe, nos permite mostrar os avanços que tiveram os processos emancipatórios e transformadores de alguns países da América Latina, mas também os retrocessos, estes potencializados pelo contexto do segundo ano de pandemia, que continua a escancarar a desigualdade, a exploração e o egoísmo, típicas manifestações do sistema capitalista.

Nossa viagem parte dos altos Andes peruanos. Ali, os povos do continente viram, com entusiasmo, renascer a esperança com a derrota eleitoral de Keyko Fujimori. Pedro Castillo, o “professor a cavalo”, de raízes populares e com propostas de esquerda, obteve a maioria dos votos no Peru. No entanto, quase um mês depois do resultado das eleições, o povo peruano continuava esperando a proclamação de seu próximo presidente. A demora foi em decorrência das tentativas de golpe do fujimorismo e da direita local, que não aceitaram a vitória de Castillo. 

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Na Colômbia, diante da enorme mobilização nacional, que passou dois meses nas ruas exigindo reformas estruturais e teve êxito em suas demandas, o governo de Iván Duque, não encontra maneiras de contra-argumentar e vencer a batalha, senão por meio de mecanismos antidemocráticos como a repressão e a violação sistemática dos direitos humanos. 

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Na Bolívia, os golpistas de outrora foram expostos ao mundo com a investigação do The Intercept. As reportagens mostram que o golpe em Evo Morales foi fruto de uma estratégia planejada, organizada a partir dos Estados Unidos, com o conluio e apoio de lideranças de países vizinhos. 

Enquanto isso, a Venezuela se prepara para as eleições regionais de novembro. O governo nacional se encontra em nova rodada de negociações sobre temas importantes, dentre eles se destacam: as sanções impostas pelo imperialismo; e o reconhecimento da Constituição Nacional e dos cinco Poderes Públicos. Essas negociações são feitas com o governo dos Estados Unidos e a oposição realmente existente. Esta última merece destaque, especialmente para a figura de Juan Guaidó que continua, sem qualquer representação ou apoio significativo em nível nacional, presidindo um país imaginário.

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Descemos a Cordilheira dos Andes em direção ao Cone Sul. Chegamos ao Chile, que depois de realizar as eleições constituintes convencionais para enterrar a Constituição de Pinochet, definiu que a próxima será redigida por 83 mulheres e 72 homens, com ampla representação de setores independentes, povos indígenas entre outros. O amplo debate sobre o modelo do país para deixar para trás a carga neoliberal continua. A disputa presidencial, por sua vez, que será definida entre novembro e dezembro deste ano, está apenas começando.

Por outro lado, no Brasil, Bolsonaro, tirando a beleza do futebol, acolheu o pedido da CONMEBOL para que o país sediasse a Copa América em meio a um caos político e epidemiológico. O povo brasileiro devolve a beleza ao jogo, pelo menos na disputa das ruas e na resistência ao genocídio perpetrado pelo atual governo. As mobilizações contra as políticas governamentais exigiram vacinas para todos, comida no prato e além do já arraigado #ForaBolsonaro.

O projeto de destruição aplicado pelo governo ficou escancarado por meio de alguns fatos, dentre eles são destacados: a denúncia de experimentação de imunidade de rebanho que ele tentou aplicar no estado do Amazonas e o avanço das privatizações e reformas neoliberais nas casas legislativas.

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Antes de sair do Cone Sul, foram alvos de análises também os cenários do Paraguai, Uruguai e Argentina. Nos dois primeiros, diferentes mobilizações contra os governos vem organizando as agendas da classe trabalhadora em meio a medidas sanitárias questionáveis. 

Na Argentina, por sua vez, se abre o caminho para as eleições legislativas de setembro, no marco do avanço da taxa de vacinação e da chegada de mais remessas de vacinas ao país.

Na Mesoamérica, a crise migratória continua a ser a principal protagonista. A manifestação dessa crise está relacionada à importância que a região ocupa na geopolítica dos Estados Unidos. Nesse sentido, o relatório analisou as visitas da vice-presidente Kamala Harris ao México e à Guatemala e destacou as mais de 180 mil prisões de migrantes, realizadas pelas patrulhas de fronteira dos Estados Unidos.

Além da crise migratória, na Guatemala, foram ressaltadas no relatório as mobilizações que ocorreram no país, que continuam exigindo a liberdade dos presos políticos. 

Em Honduras, a população está se preparando para as eleições presidenciais, doze anos após o golpe de Estado - financiado pelos Estados Unidos - contra Manuel Zelaya; Em El Salvador há preocupações crescentes com o golpe no judiciário pelo presidente Nayib Bukele, um ”defensor da democracia” com práticas antidemocráticas. 

No Panamá e na Costa Rica, membros importantes das classes políticas dominantes, inclusive ex-presidentes, devem ir a julgamento, em condutas que não são propriamente democráticas e respeitadoras das instituições, por denúncias de corrupção pelo caso Odebrecht.

Ainda na Mesoamérica, o México teve suas eleições intermediárias com resultados favoráveis ​​para o projeto do governo AMLO, mas que deixam alguns alertas, especialmente tendo em conta o referendo revogatório de março de 2022 e as eleições presidenciais de 2024.

A Nicarágua, a caminho das eleições presidenciais de novembro, vive uma crise política em um contexto de forte polarização. De um lado, o cerco permanente dos EUA e a tentativa de intervencionismo e, de outro, o endurecimento das políticas governamentais contra os adversários - muitos deles financiados pelos EUA - inclusive encarcerando alguns deles. 

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Diante disso, a OEA - aí sim, depois de manter um silêncio ensurdecedor sobre a dramática situação humanitária na Colômbia e a evidente preparação para um golpe no Peru - convocou uma reunião do Conselho Permanente, onde aprovou uma resolução não vinculante sobre a Nicarágua.

No Caribe, Cuba continua a encher nossa região de esperança. O país conseguiu a aprovação de duas de suas vacinas candidatas, Abdala e Soberana 02, como eficientes contra a covid-19. É o único país da nossa região que poderá não só vacinar toda a sua população com uma vacina produzida pelos seus próprios cientistas, mas também enviar vacinas aos países esquecidos pela doação seletiva norte-americana, como é o caso da Venezuela. Apesar da rejeição mundial ao cerco à Cuba, como demonstrado na última Assembleia Geral da ONU, onde 184 países votaram pelo fim das medidas restritivas, o bloqueio dos Estados Unidos permanece.

No Haiti, no âmbito de seu governo inconstitucional, Jovenel Moïse foi assassinado na madrugada de 7 de julho em sua residência. Isso ocorreu no marco do adiamento do referendo e de uma crise política com altos níveis de violência e insegurança. Em junho, dezenas de pessoas foram assassinadas, entre elas a ativista feminista Antoinette Duclaire e o jornalista Diego Charles. Outra alarmante situação humanitária sobre a qual a OEA se silencia, bem como a crise energética em Porto Rico e a vergonhosa construção do muro entre a República Dominicana e o Haiti.

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Todas essas placas continentais se movem à medida que os EUA buscam desenvolver e garantir sua geopolítica em nossa região em meio à urgência de reafirmar a sua hegemonia na disputa com China e Rússia. Como se fosse um jogo de WAR, os EUA continuam com os métodos de desestabilização política, através do financiamento da USAID em países como Nicarágua e México e seu cerco permanente à Venezuela e Cuba. 

Nesse contexto, Joe Biden participou da Cúpula do G7, e fez sua viagem pela Europa na qual se encontrou com Vladimir Putin, a quem passou de chamar de assassino no início de seu governo a considerá-lo um interlocutor válido alguns meses depois.

Diante disso, a América Latina e o Caribe continuam buscando cenários de encontro e articulação. Durante o mês de junho, foram desenvolvidas, dentre outras coisas: a ação continental em defesa do meio ambiente contra o capitalismo predatório; o Congresso do Bicentenário dos povos do mundo em comemoração aos 200 anos da Batalha de Carabobo; e a Cúpula de Chefes de Estado da ALBA-TCP com a participação pela primeira vez do Presidente da Bolívia, Luis Arce Catacora.

Através dessa viagem pelos países da Nuestra América foi elaborado o boletim#13 do OBSAL, que nos mostra fortes avisos e preocupações, mas também esperanças e ares de mudanças. Fazendo-nos recordar a certeza enraizada no que dizia Salvador Allende durante o golpe de Estado perpetrado pela CIA contra ele em 1973: “A história é nossa, e os povos a fazem ”. Mesmo 48 anos depois, nós vemos isso. Vamos à leitura!

 

*André Cardoso é economista, doutorando em economia política mundial pela UFABC e coordenador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social – escritório Brasil

**Marcelo Depier é mestre em economia política e doutor em ciências sociais pela PUC-SP e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

***O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares e políticos da Ásia, Africa e América Latina, que tem como objetivo promover o pensamento crítico por meio de uma perspectiva emancipatória em prol das aspirações dos povos. Leia outras colunas.

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante