A Assembleia Nacional de El Salvador aprovou a controversa política apresentada pelo presidente Nayib Bukele: tornar o país o primeiro do mundo a adotar o bitcoin como moeda corrente. A adoção da criptomoeda como moeda oficial ocorre em meio a acusações de corrupção que ameaçam a imagem positiva do presidente.
É nesse contexto que essa arriscada política seria implantada, provavelmente gerando sérias consequências a El Salvador e com elevado impacto ambiental em todo o mundo.
A proposta, recebida com curiosidade e doses relevantes de ceticismo pela comunidade internacional, faz parte da maneira peculiar pela qual o presidente salvadorenho vem guiando o país. Sofrendo com problemas crônicos de violência e pobreza, El Salvador elegeu a liderança atípica de Bukele, que governa em estilo coloquial e longe dos costumes políticos tradicionais. Até aquí, isso lhe rendeu o apoio da população.
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Durante o anúncio da medida (feita em inglês e exclusivamente pelas redes sociais), Bukele disse aos 1,5 milhões de salvadorenhos que vivem fora do país e às suas famílias que a proposta facilitará a transferencia de fundos – já que os custos de transação cobrados pelo sistema financeiro tradicional seriam eliminados.
Embora isso seja verdadeiro, os riscos envolvidos na realização dessas operações, sem o apoio de uma moeda administrada pelo Estado, são gigantescos. O bitcoin é hoje principalmente uma ferramenta de especulação, utilizada para lavagem de dinheiro obtido em múltiplas atividades ilegais. Essas características conferem à criptomoeda um nível muito alto de instabilidade.
O chefe de Estado salvadorenho alegou que a medida facilitará a inclusão financeira de milhões de pessoas, argumento sobre o qual pairam muitas dúvidas. Quando mais da metade da força de trabalho do país é informal, parece duvidoso que a implementação do bitcoin como moeda corrente tenha o objetivo de fortalecer a qualidade do emprego. Da mesma forma, sua inclusão no sistema bancário é uma política que privilegia uma aplicação digital (administrada por uma empresa privada) em um país onde uma minoria da população tem acesso à internet.
Poderíamos listar muitas outras questões sobre a implementação dessa política, mas há uma que merece especial atenção: o impacto brutal que o uso do bitcoin tem sobre as emissões de gases de efeito estufa.
A mineração de bitcoins é uma atividade que consome muita energia elétrica, sendo comparável ao consumo total de países como a Holanda ou a Argentina. Apesar de se apresentar como uma tecnologia que "desmaterializa" o dinheiro pela inovação, essa indústria está ancorada no século 19, com fontes de energia poluentes.
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A decisão desconcertante do Estado salvadorenho é um passo que terá consequências que vão além da mera novidade tecnológica. É possível prever impactos econômicos, sociais e ambientais muito sérios para a população salvadorenha. Além disso, uma análise mais profunda nos permite observar a estreita relação entre questões sociais e ambientais.
Estudos recentes mostram que a queda de produtividade como consequência da crise climática é um dos fatores que faz como que milhares de salvadorenhos tenham passado a viver na precariedade e sido forçados a migrar.
O paradoxo de serem cúmplices de um mecanismo de especulação que causa tantos danos à população e ao planeta mostra que os governos da região não consideram o caráter multidimensional das consequências de suas políticas, particularmente a partir de uma perspectiva socioecológica.
Enquanto não formos capazes de dar esse salto, a maioria da população da América Latina continuará a sofrer com injustiças, pobreza e violência. O problema é que, desta vez, a crise climática pode nos impossibilitar de reparar os erros do passado.
*Pedro Glatz é historiador chileno e coordenador de conteúdo do Nossa América Verde (www.nuestraamericaverde.org), movimento que articula ativistas, sociedade civil organizada e lideranças políticas latino-americanas em torno de um Plano de Recuperação Econômica com Justiça Social e Ambiental 2020-2030.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante