Quadrilhas especializadas em roubo de madeira em Rondônia agora invadem o Acre, estado vizinho. No começo de junho, após 18 dias de realização da Operação Curupira, o Batalhão de Policiamento Ambiental (BPA), unidade da Polícia Militar acreana, flagrou 127 toras sendo roubadas em solo acreano por madeireiras da Ponta do Abunã, localizada na tríplice divisa com o Acre e o Amazonas. O valor da carga foi avaliado em 600 mil reais.
O flagrante é a ponta de um conhecido esquema criminoso na Amazônia, que envolve o roubo de madeira e a grilagem de terras públicas. Os criminosos ambientais de Ponta do Abunã estão mirando as fartas áreas de floresta ainda intactas do Acre. A invasão acontece no momento em que o governador acreano, Gladson Cameli (PP), se inspira na política do agronegócio do estado vizinho, colocando em prática o processo que se chama a “rondonização” do Acre.
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Como quase todo o extremo oeste de Porto Velho, capital de Rondônia, foi devastado para a retirada de madeira e abertura de fazendas de gado, as florestas nos estados vizinhos são as únicas opções para fornecer madeira nobre às madeireiras – como também acontece no sul do Amazonas. Trata-se de um esquema operado em várias etapas.
Após o desmate e o roubo de madeira nobre, essas áreas são demarcadas e ocupadas por invasores. “Regularizada a posse”, os grileiros as vendem para terceiros. A infiltração de grileiros de Rondônia tem sido identificada por operações realizadas pelo BPA.
“Entre 2018 e 2019, da [Floresta Estadual do] Antimary para lá, o número de pessoas que vêm de outros estados, principalmente de Rondônia, aumentou muito. Eles começaram a fomentar as invasões de terras públicas, projetos de assentamento e terras privadas”, explica o major Kleison Albuquerque, comandante do BPA. “Em todos os locais que vamos tem gente de fora. Gente que veio de fora para invadir.”
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Em 2021, os policiais também identificaram a entrada de madeireiros rondonienses para roubar toras em áreas de floresta na divisa entre os dois estados. Entre o fim de maio e o começo de junho, o BPA recebeu denúncias de derrubada ilegal em áreas de reserva legal de fazendas no município de Acrelândia, vizinho aos distritos de Nova Califórnia e Extremo, pertencentes a Rondônia.
Esses distritos estão localizados na região conhecida como Ponta Abunã, uma das regiões rondonienses caracterizada pela intensa atividade madeireira. Além do leste acreano, o sul do Amazonas, no município de Lábrea, também é alvo das madeireiras da Ponta do Abunã.
O Acre tem registrado elevadas taxas de desmatamento decorrente, sobretudo, da invasão de terras públicas – sejam elas áreas não destinadas ou unidades de conservação e projetos de assentamento. Áreas de reserva legal em propriedades privadas também são afetadas.
Na Operação Curupira, em junho deste ano, três homens foram presos, e tratores e motosserras, apreendidos. As toras que já estavam cortadas e prontas para o transporte tiveram como destino o pátio do BPA em Rio Branco, e não as serrarias de Nova Califórnia. A polícia, contudo, ainda não decifrou como a madeira tem sido “esquentada” no estado vizinho. “A gente não sabe qual é o processo que eles usam em Rondônia para comercializar esta madeira”, afirma o comandante do batalhão ambiental.
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Em maio, investigações da Polícia Federal – que resultaram na Operação Akuanduba – apontaram que um dos esquemas usados para “lavar” madeira roubada na Amazônia é a utilização de planos de manejo, que estão sendo fraudados. Entre os alvos da PF está ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, investigado por suspeita de facilitação ao contrabando de madeira.
A coação das madeireiras
Segundo o major Kleison Albuquerque, do BPA, os moradores da zona rural de Acrelândia têm medo de passar informações à polícia. Apenas relatam que “o pessoal vem de fora para comprar.” Essa compra, explica o oficial, é feita na base da intimidação. Ou o “comprador” impõe um valor bem abaixo do mercado ou nada paga. Intimidados, os produtores nada fazem. Para fugir da fiscalização permanente que existe entre as divisas do Acre e de Rondônia, onde há presença da polícia, os caminhões “toreiros” com carga roubada trafegam por ramais paralelos à rodovia principal.
O Acre está ligado à Rondônia pela BR-364. E é ao longo desta rodovia federal que pessoas do estado vizinho vêm realizando outro delito: a invasão de terras públicas. “A situação é mais problemática nas proximidades da BR. Você pode notar que só há ocupação nas margens da BR e dos rios. Não tem nada no miolo [meio da floresta]. Até tinha nos fundos, mas são regiões de muito difícil acesso”, ressalta Albuquerque.
As áreas visadas pelos grileiros são as mais ricas em madeira de alto valor comercial. Grande parte dessa região está protegida por unidades de conservação (UCs), como a Floresta Estadual do Antimary, no município de Sena Madureira. A UC é acessível por meio de ramais acessíveis pelas margens da rodovia federal.
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Segundo o major Albuquerque, numa das operações de combate à grilagem no Antimary, a polícia descobriu que, em apenas uma das áreas desmatadas, houve a movimentação financeira de R$ 1,8 milhão com a venda de lotes medindo de 10 a 20 hectares.
“A gente perguntava para as pessoas ‘você comprou de quem?’. Daí diziam, comprei de Fulano, de Beltrano. Alguém vendeu lotes por 20, 30, 100 mil reais. Esses quase dois milhões de reais foram em uma só transação. A gente não sabe quantas vezes foi vendido”, comenta o militar.
As investigações apontam que as estratégias dos grileiros são sempre as mesmas. Há a invasão da terra pública, o desmatamento e a construção de uma casa para “marcar território”. Depois, ou é feito roçado com milho e macaxeira ou pasto para o boi. Quando a fiscalização chega, o invasor diz já morar ali há anos. Mas ao analisar imagens de satélite constata-se que até meses atrás toda a área era apenas floresta.
“Esta presença de gente de fora para fomentar as invasões está cada vez mais forte. A gente procura dar uma resposta, mas a dinâmica da invasão é muito rápida”, diz o comandante do BPA. Se antes os desmatamentos para fins de ocupação eram feitos em pequena escala por movimentos sociais de sem-terra, hoje é diferente. “Agora são associações criminosas que se juntam para invadir.”
Facções invadem assentamentos
Dentro destas “associações” estariam atuando membros de facções criminosas. Após já terem 100% do controle da rota do tráfico da droga produzida na Bolívia e no Peru, as facções encontraram na venda de lotes de terras públicas invadidas uma boa fonte de financiamento.
Conforme denúncia feita à Amazônia Real, integrantes de facções criminosas de Rondônia podem estar envolvidos no roubo de madeira e desmatamento na reserva legal do Projeto de Assentamento (PA) Antônio de Holanda, no município do Bujari, distante a 30 quilômetros de Rio Branco.
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O denunciante pediu anonimato para a reportagem ao fazer a denúncia. De acordo com ele, o caso já foi levado ao conhecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O PA Antônio de Holanda tem 108 famílias assentadas em lotes de 10 hectares cada. A reserva legal mede 540 hectares. “São 108 famílias com crianças, muita gente lá dentro abandonada pelo Estado, trabalhando miseravelmente, lutando para sobreviver”, relata a fonte.
Parte deste resto de floresta já foi derrubada pelos invasores e está à espera de dias mais secos para ser incendiado. De acordo com a denúncia, ao menos 200 pessoas estariam envolvidas. O denunciante afirma que em um outro assentamento vizinho, com 600 famílias, conhecido como PA Fazenda Brahma, membros de facção estariam intimidando os moradores a abandonarem suas áreas.
“Pessoas lá do entorno afirmam que as facções estão batendo na porta de cada uma e ameaçando. Contam que muitas pessoas estavam vendendo os lotes com medo e procurando outro lugar”, afirma o denunciante.
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Questionado sobre a possível participação de facções criminosas no esquema de grilagem de terras no Acre, o comandante do BPA foi cauteloso. De acordo com ele, tal ligação só pode ser feita a partir de investigações da Polícia Civil. Mas o oficial afirma ser comum seus policiais receberem informações da presença de facções criminosas em desmatamentos durante as operações em campo.
O que dizem as autoridades
O governo do Acre afirma que tem atuado em ações de repressão a crimes ambientais. Em nota, garante que mesmo em situação de pandemia, as ações para conter as invasões às unidades de conservação não foram interrompidas. Essas operações são coordenadas a partir do Comitê de Ações Integradas de Meio Ambiente, criado por meio de decreto de abril do ano passado.
“As estratégias estabelecidas visam garantir a conservação das florestas e a continuidade dos negócios florestais em curso, tais como as concessões florestais, o manejo madeireiro florestal, o manejo não madeireiro, este com cadeias de valor importantíssimas para a bioeconomia, dentre outras atividades apoiadas pelo governo e que garantem a manutenção de milhares de famílias nessas unidades”, informa a nota.
O Incra afirma que qualquer informação recebida pelo órgão sobre a invasão das reservas legais de seus projetos de assentamento é encaminhada à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal, ao mesmo tempo em que equipes técnicas são enviadas às comunidades rurais. “A Procuradoria Federal Especializada também é acionada a fim de adotar as medidas judiciais cabíveis”, diz nota enviada à reportagem.
De acordo com o Incra, em 2020, 150 pessoas foram autuadas por ocupação irregular nas áreas de reforma agrária no Acre. O Incra afirma manter monitoramento remoto constante das reservas dos PAs para coibir o desmatamento ilegal e a invasão para grilagem. Os assentamentos no município de Bujari, segundo o órgão federal, estão entre as prioridades.