“A gente gasta de energia [elétrica] mais ou menos uns R$ 200 por mês, cerca de 20% do salário mínimo, é um valor bem alto que compromete muito do nosso orçamento. O agricultor nunca tem aquela renda certa”. A fala do trabalhador rural Saulo Nascimento, de 28 anos, traduz a realidade de milhões de brasileiros que estão sendo afetados pelos sucessivos aumentos na conta de luz.
Saulo mora no município de Cachoeiras de Macacu, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Casado e pai de uma menina, o agricultor tem sido diretamente impactado pela crise sanitária e econômica causada pela pandemia.
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As vendas dos produtos agrícolas diminuíram e as mercadorias encalharam. Com o orçamento mais apertado, Saulo precisou cortar na alimentação e criar estratégias para economizar.
“Tem que comprar menos um pacote de feijão, de arroz e passar a comer menos frequentemente. O gás de cozinha está muito caro e eu tive que construir um fogão a lenha para mim, em vez de cozinhar à noite e de dia no gás, eu só cozinho de dia e à noite na lenha”, conta ao Brasil de Fato.
Crise hídrica?
Enquanto Saulo e muitos brasileiros tentam driblar as dificuldades no dia a dia, as contas não param de aumentar. No último dia 29, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou um novo aumento de 52% no valor da bandeira vermelha patamar 2, taxa extra cobrada em junho na conta de luz. A partir de julho, a taxa passa de R$ 6,243 por 100 kWh consumidos para R$ 9,49 por 100 kWh.
A área técnica da Aneel defendeu um aumento ainda maior na bandeira vermelha patamar 2, de 84%, o que levaria a taxa para R$ 11,50 por 100 kWh consumidos. Uma consulta pública ainda será realizada para avaliar a alteração que poderá ocorrer nos próximos meses.
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A alegação oficial para o aumento da tarifa é que o país passa pela maior crise hídrica dos últimos 90 anos, o que reduziu o nível dos reservatórios das hidrelétricas, principalmente do sudeste, responsável por 70% da produção de energia no Brasil. Isso obrigou o país a acionar as termelétricas que são uma fonte mais cara de produção de energia, o que aumentou o custo final para o consumidor.
Porém, o argumento dado pela agência é questionado por especialistas e movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). No artigo “A farsa da crise hídrica no setor elétrico”, publicado no site da organização em 29 de junho, o MAB afirma que o volume de água que entrou nas usinas hidrelétricas em 2020 foi um dos melhores dos últimos 10 anos.
“Os dados do Operador Nacional do Sistema (ONS) revelam que o volume de água que entrou nos reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras durante o último ano é o quarto melhor ano da última década, equivalente a 51.550 MW médios. No entanto, o volume de energia produzida por hidrelétricas ficou em 47.300 MW médios, ou seja, 4.250 MW médios abaixo da quantidade de água que entrou nos reservatórios no mesmo período”, destaca o texto.
De acordo com Leonardo Maggi, especialista em energia e sociedade no capitalismo contemporâneo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do MAB, os dados da ONS refletem que o país não vive uma crise hídrica, mas sim uma crise de gestão que, no fim das contas, recai sobre o consumidor.
“Não existe crise hídrica, existe uma crise de gestão do hídrico, dos rios e das barragens é onde reside a crise. Ela está no movimento feito pelas empresas de esgotar, levar ao extremo, além da capacidade natural, o uso dos rios e consequentemente das barragens para produzir energia elétrica e isso aconteceu com muita força no segundo semestre do ano passado, em que houve um ‘secamento’ das principais barragens do sudeste, que é onde está a maior capacidade instalada no Brasil. Quando seca essa região, compromete todo o sistema nacional”, explica.
Especulação
Segundo Maggi, o que aconteceu aos reservatórios das hidrelétricas, pode ser comparado a deixar uma torneira aberta em casa. A água que está sendo desperdiçada já foi paga pelo consumidor, assim como a água que passou pelas turbinas das usinas e não virou energia elétrica. O especialista detalha que o caso mais escandaloso de desperdício energético ocorreu na usina de Itaipu no ano passado.
“Quando o governo autorizou soltar a água de Itaipu com o pretexto de que o Paraguai precisava usar a hidrovia no rio Paraná, ele permitiu fisicamente que as hidrelétricas acima soltassem água sem gerar [energia]. Claro que elas poderia ter continuado com a água, justamente para preservar o lago para esse ano, mesmo com ‘crise hídrica’ e falta de chuva, nós teríamos água suficiente para passar o ano inteiro com bandeira verde”, afirma.
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A especulação financeira no setor elétrico tende a se aprofundar mais após a privatização da Eletrobras. A empresa é responsável por um terço da energia do Brasil, administrando 48 hidrelétricas, 12 termelétricas, 2 usinas nucleares, 62 eólicas e uma solar, sendo a maior transmissora de energia no país.
Os novos contratos da Eletrobras, que passarão a vigorar após a privatização, irão permitir que a companhia comercialize a energia produzida a preços de mercado. Os dados da Aneel revelam que o preço atual de venda da energia produzida por hidrelétricas da Eletrobras é de R$ 65,30/1.000 kWh, enquanto as usinas privadas cobram o valor de mercado, que é em média R$ 250,00/1.000 kWh.
O novo modelo de negócio, segundo a Plataforma Operária e Camponesa para Água e Energia e o MAB, deve significar futuramente um aumento de 20% nas contas de luz residenciais.
Enquanto os sucessivos aumento nos preços da energia não param de acontecer, Saulo e milhões de brasileiros seguem fazendo malabarismo com o dinheiro no fim do mês para pagar as contas e não ficar sem um serviço essencial: a eletricidade.
Edição: Mariana Pitasse