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#MarcoTemporalNão

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A tese do marco temporal surgiu de forma clandestina, no célebre julgamento que reconheceu o direito sobre a terra Raposa Terra do Sol, em Roraima, aos grupos que originalmente a ocupam - CIR / Amazônia Real
Trata-se do desrespeito, que a adoção da tese do marco temporal implica

Por Marco Alexandre Souza-Serra*

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a julgar o Recurso Extraordinário n. 1.017.365. Neste recurso, para além de uma disputa em torno de território tradicionalmente ocupado pelo povo Xokleng, no atual Estado de Santa Catarina, está sob avaliação a necessidade de um determinado grupo indígena exercer diretamente a posse sobre o território que reclama como próprio no dia da promulgação da atual Constituição brasileira, em 5 de outubro de 1988. Esta a chamada tese do “marco temporal”.

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A decisão alcançará a generalidade das demais disputas de terras indígenas existentes no país, demarcadas ou não. Ostenta, na linguagem técnica, repercussão geral.

Três são as principais linhas de força que definem o campo de tensão em que este debate será travado.

Uma primeira, e talvez mais importante, reside na marcada violência que a exigência de posse atual por parte dos indígenas em 5 de outubro de 1988 traduz. Inconfundível com aquela que designa a experiência dos povos originários dessas terras desde o início da conquista, divisa-se agora uma violência tão grave quanto a que agride a própria História, capaz de pretender determinar, numa canetada, que a história dos indígenas brasileiros se iniciou apenas em 1988.

Uma segunda questão é que a tese do marco temporal surgiu de forma clandestina, no célebre julgamento que reconheceu o direito sobre a terra Raposa Terra do Sol, em Roraima, aos grupos que originalmente a ocupam.

::Marco temporal vai ao pleno do STF e define demarcação: o que esperar do julgamento?::

Avaliada inicialmente como uma rumorosa vitória para os povos indígenas em geral, o atendimento à tal exigência de estarem na terra quando da promulgação da Constituição de 1988, no caso, pelos grupos envolvidos, acabou transcendendo muito negativamente sobre disputas territoriais de povos desalojados compulsoriamente de suas terras pela sociedade envolvente e hegemônica através dos tempos, sempre com a decisiva participação, por ação ou omissão, do Estado brasileiro.

Uma última linha recai sobre um aspecto ainda mais técnico. Trata-se do desrespeito, que a adoção da tese do marco temporal implica, para o que se tem chamado de bloco de constitucionalidade. Referido bloco é o filtro pelo qual toda norma jurídica deve passar para ser considerada válida. É constituído, além de pela própria Constituição, por tratados internacionais de direitos humanos.

A tese do marco temporal, enfim, constitui a perpetuação de violências que estão na raiz de nossa formação social. Não há dúvidas de que nosso ordenamento jurídico a rechaça. Ao STF agora compete deixar isto suficientemente claro. À sociedade brasileira preocupada com uma democracia inconfundível com periódicas eleições, cabe radicalizar o exercício de sua cidadania.

 

*Marco Alexandre Souza-Serra (marcoalexandre.com), advogado, professor e pesquisador, coordena o Grupo de Trabalho Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante