A memória de Carabobo continua a acender aqueles incêndios nas comunas da Venezuela
Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, esta semana de Carabobo, Venezuela.
Há 200 anos, em 24 de junho de 1821, as forças de Simón Bolívar derrotaram os monarquistas espanhóis na Batalha de Carabobo, algumas centenas de quilômetros a oeste de Caracas, Venezuela.
:: 200 anos após a Batalha de Carabobo, Venezuela propõe uma Internacional dos Povos ::
Cinco dias depois, Bolívar entrou em Caracas triunfante; as fortalezas espanholas de Cartagena e Puerto Cabello foram tomadas pelos exércitos do Libertador, tornando impossível o retorno da Espanha ao poder. Em Cúcuta, um congresso se reuniu para redigir uma nova Constituição e eleger Bolívar como presidente.
Bolívar, agora chefe da República da Grande Colômbia (hoje Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador), não descansava. Ele montou em seu cavalo e cavalgou para o sul em direção a Quito, onde as forças espanholas permaneceram e seriam derrotadas em 24 de maio de 1822 na batalha de Pichincha.
:: Festival virtual celebra participação brasileira na independência da Venezuela ::
Levaria mais dois anos para expulsar a Espanha do hemisfério, mas a tendência era inevitável. Carabobo havia quebrado o espírito imperialista da monarquia espanhola.
A monarquia espanhola perdeu seu controle sobre as Américas, mas outras ameaças surgiram. Em 2 de dezembro de 1823, o presidente dos Estados Unidos, James Monroe, disse ao Congresso de seu país que as Américas não eram mais o domínio das antigas potências europeias.
Mas a Doutrina Monroe não implicava que as várias partes das Américas, incluindo a Grande Colômbia, seriam soberanas. A Doutrina significava que os Estados Unidos da América poderiam se comportar no hemisfério como se fosse uma velha potência imperial, uma tendência que se tornaria mais clara à medida que a tecnologia militar dos EUA foi melhorando. A clareza quanto aos objetivos da Doutrina Monroe veio de duas maneiras.
:: O que podemos aprender com os 200 anos da vitória da Batalha de Carabobo na Venezuela ::
Primeiro, pelo comportamento dos Estados Unidos, cujas Forças Armadas intervieram diretamente em todo o continente, do Peru (1835-36) à Guatemala (1885), passando por Cuba e Porto Rico (1898).
Em segundo lugar, por meio do corolário da Doutrina do presidente Theodore Roosevelt em 1904, que incluía o direito dos EUA de agir – nas palavras de Roosevelt – como uma “potência policial internacional” no hemisfério.
Bolívar entendeu a natureza dessa nova ameaça. Em sua carta de 1829, ao encarregado de relações britânico Patrick Campbell, Bolívar escreveu que os Estados Unidos “pareciam predestinados pela Providência a atormentar as Américas com misérias em nome da liberdade”.
É por isso que ele convocou um congresso no Panamá em 1826 para criar uma plataforma de unidade política. Infelizmente, poucos dos novos Estados vieram para o Panamá. A unidade regional continuou sendo um sonho, mas que pontualmente encontraria adeptos que tentassem torná-la realidade.
:: Repórter narra como é cruzar por terra da Venezuela ao Brasil em plena pandemia ::
No século XXI, Hugo Chávez assumiu o projeto de unidade regional das Américas. Por uma boa razão, ele chamou os processos revolucionários na Venezuela e na América Latina de Revolução Bolivariana. “O que vemos no período da história entre 1810 e 1830 são os contornos de um projeto nacional para a América do Sul”, disse Chávez. Esse é o projeto que Chávez desenvolveu na Venezuela e na região por meio da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ambas fundadas em 2004.
Desde a primeira vitória eleitoral de Chávez em 1998, os Estados Unidos vêm tentando sabotar o processo bolivariano. O fedor de Monroe permeia a política dos Estados Unidos, enquanto a resistência venezuelana é exaltada pelo espírito de Carabobo.
:: Venezuelanos se dividem entre propostas antagônicas para recuperação da economia ::
Sanções vingativas dos EUA contra a Venezuela, definidas com precisão para derrubar o bolivarianismo, continuam apesar da pandemia. No ano passado, a pressão do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos impediu o Fundo Monetário Internacional (FMI) de permitir que a Venezuela acessasse seus próprios fundos e outros recursos emergenciais relacionados à pandemia.
Entre abril e maio de 2021, a Venezuela autorizou o banco suíço UBS a pagar ao mecanismo Covax 10 milhões de dólares para comprar vacinas da Covid-19. Em 7 de junho, a Covax escreveu ao governo venezuelano para informá-los de que o UBS havia bloqueado os pagamentos. O banco sentiu o peso da política dos EUA em suas portas.
Na reunião do G-7 no País de Gales, os sete governos, dos Estados Unidos à Alemanha, concordaram em usar uma linguagem morna para o fornecimento de vacinas. As promessas de um bilhão de vacinas circulando em todo o mundo vieram sem quaisquer especificações; é sabido que as promessas feitas nas reuniões do G-7 raramente são honradas. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, questionou a manchete sobre o bilhão de vacinas.
::O que está acontecendo na Venezuela::
“Precisamos mais que isso”, disse ele. “Precisamos de um plano global de vacinação”, o que exigiria o aumento da produção das vacinas e “uma força-tarefa de emergência para garantir a concepção e, em seguida, a implementação desse plano global de vacinação”
Para tanto, três vozes importantes da Ásia, África e América Latina – KK Shailaja (ex-ministro da saúde, Kerala, Índia), Anyang “Nyong’o (governador do condado de Kisumu, Quênia) e Rogelio Mayta (ministro das Relações Exteriores, Bolívia) – reuniram-se para escrever sobre o internacionalismo das vacinas. Eles apresentaram três propostas:
1. Remover as patentes de propriedade intelectual das vacinas.
2. Compartilhar conhecimento sobre como fazer as vacinas.
3. Concentrar-se na desobediência coletiva para anular os direitos de propriedade intelectual.
O terceiro aspecto exige palavras próprias, imbuídas do espírito de Carabobo:
Certas disposições para anular as proteções à propriedade intelectual já existem, por exemplo, por meio da Declaração de Doha de 2001 da OMC. No entanto, os países hesitam em fazê-lo devido ao medo de sanções de certos governos e represálias de grandes empresas farmacêuticas. Consideraremos como poderíamos introduzir uma legislação nacional para anular coletivamente as proteções à propriedade intelectual, introduzindo uma ameaça séria ao modelo farmacêutico de monopólio atualmente em jogo.
Existem dois elementos-chave nesse ponto sobre a desobediência coletiva. Em primeiro lugar, reconhece a frieza com que “certos governos” imporão sanções a qualquer um que se atreva a quebrar o estrangulamento dos Aspectos Relacionados ao Comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual, ou Trips, que beneficiam as grandes farmacêuticas acima de tudo.
Em segundo lugar, apresenta a corajosa sugestão para as nações do Sul Global encontrarem meios legais dentro de seus países para deixar de lado a captura dos bens comuns pelas grandes empresas farmacêuticas. Há uma sugestão realista nesse último ponto.
Seria muito mais poderoso se os países do Sul – especialmente os 25 Estados que gastam mais com serviço da dívida do que com saúde – se unissem e criassem um bloco para o internacionalismo de vacinas.
Mas esse tipo de solidariedade regional ampla não está facilmente disponível hoje, uma vez que as plataformas regionais e globais – incluindo o Movimento dos Não-Alinhados (MNA) de 60 anos – estão consideravelmente enfraquecidas. Fortalecer o regionalismo era justamente o programa de Chávez e do movimento bolivariano.
O regionalismo, como Chávez o reconheceu, não é apenas uma plataforma de mercados e instituições comuns para promover os interesses das corporações globais e das elites nacionais.
Esse é o tipo de regionalismo que define a União Europeia, por exemplo. Tampouco é suficiente desenvolver um regionalismo limitado pela ideologia da cultura, que muitas vezes permeia o pan-arabismo e o pan-asiatico.
O imenso poder das corporações globais provoca a necessidade de algum tipo de barreira, que talvez não possa mais ser erguida apenas por países isoladamente, já que são vulneráveis a sanções e ameaças.
O que é necessário é uma plataforma mais ampla, a unidade de continentes inteiros ou de partes do mundo que se recusam a ceder à autoridade do G-7 ou dessa ou daquela corporação global.
Regionalismo desse tipo não significa apenas a unidade de um conjunto de países em um continente; requer que o poder do Estado, pelo menos em alguns países-chave, seja detido pela classe trabalhadora e pelo campesinato. Apenas um governo apoiado pela força popular terá a coragem de enfrentar a autoridade e o poder de “certos governos”, como Shailaja, Nyong’o e Mayta disseram cuidadosamente.
Enquanto Bolívar permanecia em seu leito de morte em Santa Marta (na atual Colômbia), seu médico lia para ele jornais franceses. Eles viram uma canção que havia sido cantada pelos partidários da Revolução de Julho de 1830 quando entraram no Hôtel de Ville para tomar Paris:
América, para nos alegrar,
Olha para nós de longe.
Seu anel de fogo de repúblicas
Foi iluminada por Bolívar.
A memória de Carabobo continua a acender aqueles incêndios nas comunas da Venezuela, nas ruas da Colômbia, a revolta dos agricultores na Índia e as comunidades de favelas na África do Sul.
Cordialmente,
Vijay.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo