No dia 19 de abril soubemos em uma reunião com movimentos sociais, coletivos e partidos, que uma ocupação de famílias entrara em um território de propriedade de uma grande construtora na cidade de Campos dos Goytacazes, no norte fluminense. Jamais podíamos imaginar o quão transformadora seria aquela experiência urbana.
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O grupo de aproximadamente 15 pessoas que se deslocou para o Parque Aeroporto em 21 de abril de 2021, seguia um GPS falho. Mesmo assim, não foi difícil encontrar mais um dos gigantescos conjuntos de casinhas enfileiradas divididas por fases de entrega. Enquanto alguns já haviam levantado o muro alto, alterado a faixada e dado um pouco de identidade à uma proposta pouco arborizada e absolutamente industrial de construção, centenas de famílias resolveram ocupar casas não entregues e ali permanecer.
Com seus corpos cansados pelas noites de enfrentamento e truculência com seguranças contratados, estavam ali bradando pelo direito a viver e morar na segunda maior cidade do estado do Rio de Janeiro e a primeira em extensão. Cidade na qual está localizada a Bacia de Campos, o Porto do Açu, universidades e uma rede extensa de educação pública.
Apoiamos a Ocupação Novo Horizonte há 67 dias, lutando pelo direito à moradia digna junto as famílias enquanto o preço do aluguel e da cesta básica disparam. Estamos na Ocupação Novo Horizonte vendo mais de 400 famílias caminharem diariamente atrás de água e suportando o frio.
Já faz algum tempo, aprendemos de forma coletiva como é possível manter uma cozinha comunitária, que hoje funciona com total autonomia dos próprios moradores. De forma organizada, coesa, com luz de emergência, planilhas de custo, cardápio diversificado.
Aprendemos a driblar as cercas que fazem com que esta ocupação lembre um campo de concentração no século XXI. E é tanta terra, é tanto céu em nossa noite, que cada assembleia traz a motivação para permanecer. Porque eles sabem que querem resistir.
Estamos na Ocupação Novo Horizonte ouvindo a Prefeitura apresentar nada como se fosse muito e escudar-se atrás da técnica para desfazer-se de sua população negra.
Nestes 67 dias já tivemos nascimentos na Ocupação, lá estão pessoas que chegam de abrigos e da rua. Incidentes de toda ordem. Até cãozinho atropelado e clínica lotada já entraram para memória destas pessoas que carregam ração e alimentam seus bichos de estimação nestes dias tensos.
População bisneta de usina. População ainda vagando sobre a terra exigindo o que a séculos já devia estar em suas mãos. Já foram muitas as assembleias, as reuniões ao anoitecer, as decisões dias antes da possibilidade de reintegração de posse. Já foram muitas as audiências com a Prefeitura de Campos que prefere manter-se em uma estranha morosidade diante de um confronto eminente entre sociedade civil e forças da ordem.
São tantas usinas, é tanto petróleo, é tanta criança fora da escola, é tanta mãe sem emprego. Domésticas, atendentes de padaria, vendedores de caldo de cana, pedreiros, ajudantes de pedreiro, mestres de obra.
Nós aprendemos a ouvir uns aos outros na igreja, a deslocar nossos sonhos para recompor mais a frente, a preparar o recuo, preparando a resistência.
Driblamos interesses, recompomos as forças após as chuvas, voltamos à quadra para assinar papéis, para achar brechas na lei, para forçar a responsabilidade de quem vira as costas preferindo o descarte. Vivemos momentos de reconhecimento mútuo, “verdades” ditas em reuniões para acertar o passo. Da chave, dos horários de alimentação, das formas de comunicar.
Quando olhamos para o primeiro dia, e vimos o tamanho da fila que se formava para alimentação, ainda não sabíamos qual era o tamanho daquela população.
Chegar ali para apoiá-los e garantir que permaneceríamos ali e saber que horas atrás aquela população tinham sido acossada nas casas e ainda recolhia do chão os projéteis de bala, provas irrefutáveis das formas de terror dispensadas aqueles que lutam por moradia em 2021 no Brasil.
Tentam dissuadir essas pessoas enviando para cá a Tropa de Choque, de policiais também sem casa que se deslocarão em meio a uma pandemia para bater em uma população descalça. Em um país tão desigual.
Nós tentamos traduzir a linguagem jurídica para quem raramente teve acesso aos próprios direitos. Nestes meses de troca, vimos brigas domésticas, vimos casos de fome e depressão, vimos a força da ajuda comunitária entre vizinhos. Também não foram poucos os pequenos conflitos envolvendo julgamentos internos sobre quem precisa ou não de casa. Conflitos que são resultado da precariedade estrutural que degrada aqueles que já não acreditam na luta coletiva.
Homens, mulheres, crianças, eles andaram sem parar pelas ruas da Ocupação, em todos estes dias, e a cada madrugada. Sentaram em frente as casas mirando o infinito. E de lá não sairão. Entre as resistentes trabalhadoras, ouvi: “um dia eu estava fazendo a ronda e vi uma criança andando de bicicleta do outro lado da grade, seu eu quisesse chegar até esta criança, eu tinha de dar uma volta enorme no quarteirão. Veio a lágrima nos olhos, me lembrei da época do nazismo, e uma tristeza me fez pensar muito naquilo ali.
Eu pensei: "poxa vida, quanta desigualdade social, quanta pobreza. Em 2021 ainda vemos isto”. Outras narrativas recuperaram memórias de tensões familiares, naturais nestes contextos. Bebês presentes nestes territórios, dormindo no chão com seus pais, crianças com crises de bronquite. Famílias com quatro integrantes vivendo com R$ 150 por mês.
Faltam medicamentos, pessoas com problemas de saúde recebem a solidariedade de vizinhos.
É como a cada dia, recriar a vida com alternativas possíveis em meio ao medo, o fantasma de reintegração sobre nossas cabeças. A violação dos direitos humanos desta população está configurada não apenas nas grades mas na falta de água e luz. Há perigo de incêndio por uso de velas à noite, idosos padecem tendo de se deslocar na busca por água, há relatos de mulheres que têm emagrecido desde o início da ocupação pela precariedade experimentada.
Bebês dormem no chão em pleno inverno porque não podem trazer seus móveis para as casas. A sensação dos moradores é de que vivem enjaulados, separados por grades. Recentemente, ao tentar cozinhar utilizando álcool e improvisando uma lata, moradora da Ocupação teve braços, rosto e cabelos queimados. Sua situação é grave e segue internada no hospital Ferreira Machado, em Campos.
Esta Ocupação tornou-se nosso motor de ação, de composição, criação e aprendizado. Esta experiência nos atravessa e nos mortifica a cada possibilidade de reintegração de posse. No dia 23 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, deferiu o pedido da Defensoria Pública da União (DPU) e do Núcleo Jurídico Popular da Ocupação Novo Horizonte. Com este ato, revogou a reintegração de posse.
De luta em luta, avançamos.
E do meio da tarde, aparecem crianças com pipas, brincando com patinete e andando a cavalo no meio das motos. A vida na Novo Horizonte, resiste, persiste, se reinventa dentro da realidade mais crua e brutal que se pode imaginar.
A coragem de lutar antecipa a vitória sobre a opressão e a especulação imobiliária. Estas pessoas não aceitam que suas vidas sejam reduzidas a um cálculo sobre metros quadrados. Há muita terra e se tem gente sem casa, que a casa seja garantida. Com dignidade.
*Pesquisadora do Núcleo Cidade Cultura e Conflito da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
Edição: Mariana Pitasse