Letalidade

Artigo | Por onde anda a prioridade absoluta da defesa da vida dos jovens do Brasil?

Durante as últimas três décadas mais de 265 mil crianças e adolescentes foram assassinadas no Brasil

Brasil de Fato | Maceió (AL) |
No Sudeste, a maior incidência de homicídios do público juvenil ocorre no Rio de Janeiro e em Minas Gerais - Custodio Coimbra

A Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), através do grupo de trabalho Letalidade, apresentou, em dezembro de 2020, relatório sobre o extermínio de adolescentes e jovens no Brasil.

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O documento foi estruturado com base na coleta de informações a partir de clipping de notícias jornalísticas sobre a morte de adolescentes em cada estado do território brasileiro e por meio dos dados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 e Atlas da Violência 2020, ambos compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA).

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Os dados apresentados são assustadores. Em primeiro lugar, cumpre destacar que durante as últimas décadas (1980-2018) mais de 265 mil crianças e adolescentes, entre 0 a 19 anos, foram assassinadas e assassinados no Brasil.

Durante este período, apenas em dois momentos houve redução na intensidade do crescimento das mortes, primeiro com a sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e posteriormente com o Estatuto do Desarmamento (2003), aquele em virtude do importante papel em introduzir em nosso ordenamento a doutrina da proteção integral¹, transformando tornando as crianças e adolescentes em sujeitos de direitos, e este diante das informações conclusivas de que o instrumento mais utilizado na execução deste público é a arma de fogo.

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A pesquisa, também ancorada em clipping de notícias jornalísticas, apresenta apontamentos significativos na forma como os casos de homicídios contra crianças e adolescentes são tratados nos meios de comunicação, de modo que se percebe pouco ou nenhum destaque na mídia tradicional, o que caracteriza evidente invisibilidade perversa² da situação de violência perpetrada em desfavor desta população.

Ademais, nos portais alternativos em que os casos são noticiados, geralmente as vítimas envolvidas são objetificadas, distante da humanização necessária, de modo geral apresentadas nas reportagens sem histórias, famílias, ou seja, indignos da vida, bem como há flagrante descaso com as investigações para elucidação do caso.

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Diante dos números de homicídios registrados no Brasil nos últimos anos, observa-se que em 2018 houve uma pequena redução quando comparada ao ano anterior, todavia, o país catalogou 57.956 mortes, conforme dados do Atlas da Violência (2020).

Neste contexto, mais da metade das vítimas pertencem ao grupo etário entre 15 a 29 anos, com a assombrosa marca de 30.873 vidas jovens perdidas, o que representa 53,3% do total dos assassínios registrados.

Sendo assim, neste mesmo ano, no que se refere à taxa de homicídios deste público por 100 mil habitantes, este percentual evoluiu para 60,4. Além dos números apresentados, o relatório expõe, minuciosamente, dados desagregados por regiões do país.

Em breve resumo, observa-se que no Centro-Oeste a maior frequência de homicídios do público juvenil ocorre no Mato Grosso e no Distrito Federal, enquanto no Sudeste a maior incidência ocorre no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, além de haver mais registros sobre a raça/etnia das vítimas nesta região. No Norte, o destaque é para o maior número de homicídios de adolescentes do sexo feminino nesta região. Na região Sul, o destaque é para o estado do Paraná, com maior número de mortes em desfavor do público jovem.

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A região Nordeste merece atenção em virtude de apresentar os maiores índices de homicídio de jovens no país. Mais à frente, destaca-se o número acentuado de mortes provocadas por adolescentes, ou seja, de jovens matando jovens.

Outro aspecto que foge das características nacionais é o predomínio de reportagens datadas no ano de 2020, período marcado pela pandemia da Covid-19, em que o isolamento social prevaleceu como medida de prevenção adotada pelos estados, no entanto, mesmo diante deste cenário, a violência permaneceu crescente.

Outrossim, dos 9 estados da região, 7 possuem taxa de homicídios superiores à média nacional (60,4 por 100 mil habitantes), com exceção apenas do Maranhão e do Piauí.

Por fim, o documento trabalha as mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil. Neste sentido, a faixa etária entre 15 a 29 anos concentra 78,5% das vítimas de homicídios por intervenção policial.

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Ademais, 99,3% são do sexo masculino, 81,5% possuem somente o ensino fundamental (completo e incompleto) e 75,4% são pessoas negras. Portanto, em regra, o alvo são homens pretos, pobres, de baixa escolaridade e, consequentemente, das periferias.

Portanto, apesar de todo esforço legislativo na superação do menorismo, através do mandamento constitucional da prioridade absoluta das crianças, adolescentes e jovens, previsto no art. 227, e da doutrina da proteção integral introduzida no Estatuto da Criança e do Adolescente, constata-se que a realidade dos adolescentes ainda é muito distante do compromisso político assumido pelo poder público.

Constata-se também como consequência do abandono de políticas públicas direcionadas às crianças e adolescentes, o descaso incide sobre os jovens do grupo etário entre 15 a 29 anos para fins da pesquisa, que adentram na vida adulta precocemente e sem qualquer perspectiva profissional e acadêmica, sendo seduzidos para o caminho perverso da criminalidade.

 

*Arthur Lira é advogado do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Zumbi dos Palmares e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

**O presente texto é fruto da apresentação do autor, na condição de representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), durante a discussão regional sobre “Desafios dos defensores dos direitos da criança e do adolescente no contexto de fragilidade, democracias, desigualdades e pandemia na América Latina” organizado através da Rede de Coalização SUL, em aliança com ANONG Uruguai e REDHNNA Venezuela e em colaboração com o Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas pelos direitos humanos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo