É preciso, mais do que nunca, defender o ecossistema que grita por socorro
Allyne Dayse Macedo de Moura*
O Direito Ambiental surge, historicamente, fruto do debate global sobre a necessidade de se regular as atividades econômicas e o uso dos recursos naturais, buscando minimizar os impactos do homem sobre a natureza e garantir um ambiente saudável para as gerações atuais e futuras.
Mais recentemente, há um aperfeiçoamento do Direito Ambiental que passa pela compreensão da necessidade de proteção do meio ambiente por si só, na medida em que este é essencial para manutenção da vida terrestre em toda sua amplitude.
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No Brasil, a Constituição de 1988 traz expressamente que todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de defende-lo e preservá-lo, assim como o reconhece como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, dedicando um capítulo inteiro ao tema.
Na contramão dessa caminhada, se fortalece cada vez mais uma corrida de desenvolvimento desenfreado que implica na exaustão dos recursos naturais e gera inúmeros impactos negativos para o meio ambiente e para os seres que nele vivem, inclusive nós, humanos.
Somente para exemplificar alguns dos trágicos desastres ambientais ocorridos em nosso país nas duas últimas décadas, podemos citar o vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro (2000); os 4 milhões de litros de óleo derramados nos Rios Barigui e Iguaraçu, no Paraná (2000); o incêndio da empresa Ultracargo, no Porto de Santos, em São Paulo (2015); e o rompimento das barragens da mineradora Vale em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais (2015 e 2019, respectivamente).
Todos esses crimes ambientais, cometidos no desenvolvimento de atividades econômicas de grande porte, causaram impactos imensuráveis ao ecossistema e às populações locais que até hoje seguem sem a reparação integral e obrigadas a conviver com os efeitos da degradação provocada.
Nesse cenário, torna-se imperativo o Princípio da Prevenção no Direito Ambiental, de modo a orientar as ações humanas para evitar a ocorrência de novos danos os quais são, tantas vezes, de difícil ou impossível reparação.
Um importante instrumento preventivo da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6938/1881) é o licenciamento de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras que, juntamente com a avalição de impacto ambiental, possibilita o Poder Público controlar e acompanhar empreendimentos e ações que possam causar danos ambientais, estabelecendo condições para eliminar, quando possível, ou minimizar esses danos.
É bem verdade que, ao longo das últimas décadas, ambientalistas e movimentos populares já denunciavam a necessidade de efetivação da legislação ambiental, a despeito da resistência de diversos setores econômicos e das limitações administrativas dos órgãos de fiscalização.
No entanto, desde o início do Governo Bolsonaro, vivenciamos um agravamento das violações ao Direito Ambiental em proporções alarmantes.
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Falo, por exemplo, do aumento exponencial de desmatamentos e queimadas e da intensificação da pressão por parte de empresas de mineração e de garimpo sob os territórios indígenas, para citar algumas das graves situações que vem ocorrendo no país, e que se somam às diversas propostas e medidas do atual Governo Federal e do Congresso Nacional para flexibilizar os instrumentos de proteção legalmente instituídos e fragilizar o resguardo de importantes áreas protegidas, representando verdadeiros retrocessos ambientais.
Entre as proposições que enfraquecem o Direito Ambiental brasileiro, destaca-se o Projeto de Lei nº 3.729/2004, que trata da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, desengavetado após 17 anos de sua apresentação inicial e aprovado às pressas, na madrugada do dia 13 de maio deste ano, pela Câmara Federal.
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A proposta, que agora segue para votação no Senado, retira a obrigatoriedade do licenciamento para uma lista enorme de empreendimentos e atividades impactantes.
Permite a adoção de procedimentos próprios pelos estados e municípios, gerando insegurança jurídica e possibilitando que regras menos restritivas sejam adotadas para atrair investidores.
Também institui um licenciamento auto declaratório, construído pelas próprias empresas interessadas e sem qualquer controle social; além de prever o licenciamento apenas para territórios tradicionais com a demarcação já concluída.
Isso acontece sem qualquer lógica a não ser a desproteção dessas áreas, ignorando o caráter meramente declaratório e o cenário de paralisação completa nos processos demarcatórios das terras indígenas e quilombolas no país, potencializando a vulnerabilidade dessas populações e do ambiente onde vivem, dentre outros absurdos do projeto aprovado.
Em um momento no qual deveríamos estar somando forças para contenção da trágica situação sanitária, social e ambiental que estamos vivenciando, a flexibilização do licenciamento ambiental, em sentido contrário, enfraquece ainda mais a proteção ao meio ambiente.
Isso fere importantes preceitos constitucionais e compromissos internacionais estabelecidos pelo Estado Brasileiro, como a Convenção nº 169 da OIT, diminuindo drasticamente o controle ambiental, passando por cima da gestão participativa, violando direitos dos povos indígenas e das demais populações tradicionais.
Ignorando, inclusive, a basilar Consulta Livre, Prévia informada no processo de construção e votação da proposta em curso e no próprio conteúdo do Projeto de Lei.
Trata-se, pois, de um projeto de caráter antiambiental e antidemocrático que precisa ser barrado por sua inconstitucionalidade e por contrariar sua própria razão de existir, ao se apresentar como uma das maiores ameaças à sustentabilidade ambiental do Brasil.
Visa apenas a mera facilitação para desenvolvimento de atividades econômicas, sem compromisso técnico, social e ambiental, cuja aprovação traria prejuízos inestimáveis para toda a sociedade brasileira.
É preciso, mais do que nunca, defender o ecossistema que grita por socorro. O tempo de impedir os retrocessos ambientais é agora. Como nos alerta um pensamento indígena, não podemos esperar o último rio secar, a última árvore ser cortada e o último peixe ser pescado para que entendam que dinheiro não se come.
*Allyne Dayse Macedo de Moura é Advogada, Mestre em Antropologia Social e Militante da Consulta Popular.
** Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo